Onde se lê 2008/2009, leia-se 2009/2010 14/12/2008
- Pedro S. Malan*
A piada é conhecida - e antiga: o que deixa o cargo faz chegar três envelopes lacrados e numerados a seu sucessor. Para serem abertos, um de cada vez, apenas em diferentes momentos de crise. Na primeira crise, o envelope, aberto, traz o conselho: não deixe que a crise o atinja, jogue toda a culpa no(s) seu(s) antecessor(es). Na segunda crise, o envelope, aberto, contém a recomendação: não permita que a crise o alcance, livre-se de pessoas-chave de sua equipe. Na terceira crise, a sugestão do envelope, aberto, é: escreva três cartas para seu sucessor.
O presidente Lula utilizou durante anos, ad nauseam, a sugestão da primeira carta. Esperemos que apenas como esperteza política. Afinal, não lhe seria conveniente reconhecer, de público, algo que ele sabia - ou deveria saber. Que, por exemplo, o risco Brasil se multiplicou por 4 e a taxa de câmbio disparou de R$ 2,30 para R$ 3,99 por dólar entre abril e outubro de 2002 (com todas as implicações sobre os índices de inflação do último trimestre do ano), em larga medida, devido a incertezas, não sem fundamento, sobre o que seria o ¨modo petista de governar¨ em matéria de política macroeconômica - entre outras.
O segundo envelope, aberto em algum momento em 2005, levou à saída do governo do ministro José Dirceu, na prática, até então, o virtual chefe do governo; o verdadeiro ¨capitão do time¨, na expressão do próprio presidente. Desde então, o presidente Lula utilizou inúmeras vezes a sugestão da segunda carta, ao jogar ao mar pessoas-chave de seu governo e de seu partido, sempre que crises pudessem eventualmente atingir a sua própria pessoa. E deixou claro que não hesitaria em utilizar a recomendação contida no segundo envelope em eventuais crises futuras.
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O presidente Lula ainda não abriu o terceiro envelope. É desnecessário fazê-lo. Em parte, porque o presidente, pessoa bem-humorada, conhece a piada - tanto que a vem seguindo à risca. Em parte, porque ainda tem algum tempo antes de escrever três cartas a seu sucessor.
Seria interessante, embora meio inútil, imaginar qual seria o conteúdo das três cartas do presidente Lula. Mas, seguramente, a primeira carta seria redigida de outra maneira. É possível que o atual presidente pense em sugerir a seu sucessor que procure deixar de lado aquilo que virou uma marca registrada sua: a eterna ladainha do nunca-antes-jamais-na-história-deste-país.
Afinal, já estamos em janeiro de 2008. Passaram-se cinco anos ao longo dos quais o governo Lula se beneficiou de uma combinação positiva de três ordens de fatores: uma situação internacional extraordinariamente favorável de 2003 a 2007, uma política microeconômica não-petista seguida por Antonio Palocci e Henrique Meirelles e uma herança não-maldita de mudanças estruturais e avanços institucionais alcançados na vigência de administrações anteriores - inclusive de programas na área social que foram mantidos, reagrupados e ampliados.
Com esta base, o governo Lula vem construindo a herança que legará a seu sucessor em 2010. Mas, antes disso, este governo será testado, em 2008 e 2009, de uma maneira que nunca foi, desde o seu início, cinco anos atrás.
É verdade que houve um duro teste no início de 2003. Pelo qual este governo passou, e bem, e não apenas porque os ventos da economia internacional passaram a soprar a nosso favor. Vale lembrar, neste conturbado início de 2008, que o fundamental foi a capacidade de resposta da área econômica do governo às conseqüências do pânico que se instaurou nos mercados no segundo semestre de 2002 (no Brasil, por razões conhecidas; nos EUA, por medo de deflação). O ministro Palocci formou sua equipe com profissionais como Marcos Lisboa, Joaquim Levy e Murilo Portugal, na Fazenda, e Henrique Meirelles, Ilan Goldfajn e Beny Parnes, no BC. Essa equipe formulou - e implementou - uma clara resposta de política macroeconômica às turbulências, incertezas e medos que prevaleciam em fins de 2002, início de 2003.
O aumento do esforço fiscal - anunciado e realizado - e a reafirmação do compromisso inarredável com o controle da inflação mostraram, mais uma vez, aos brasileiros e ao resto do mundo, que o Brasil, apesar das aparências em contrário, continuava, gradualmente, a se transformar num país mais ¨normal¨, isto é, um país mais previsível, que dispensava tentativas de reinvenção da roda, de radicais rupturas com o passado, de experimentos heterodoxos nunca antes vistos. Um país no qual a política macroeconômica não seria conduzida com argumentos ideológicos ou político-partidários. O governo Lula e a economia brasileira derivaram um enorme benefício desta percepção de que caminhávamos para nos tornar um país mais maduro. E, principalmente, um país com capacidade de mostrar certa qualidade nas suas respostas de políticas microeconômicas e setoriais a situações de crise.
Pois bem, é exatamente esta percepção que estará sendo submetida a duros e múltiplos testes em 2008 e 2009, quando, pela primeira vez desde que assumiu a Presidência, em 2003, o governo Lula não contará com uma situação internacional tão extraordinariamente favorável como até 2007.
Ao mesmo tempo, o País enfrenta uma deterioração da situação fiscal, maiores pressões inflacionárias, gargalos em infra-estrutura, um risco de racionamento de energia, excessos de complacência e voluntarismo de seus governantes, continuado aparelhamento e loteamento político de cargos públicos, contínuo fluxo de bizarrices de sua crescente ala ¨heterodoxa¨ e uma extraordinária dificuldade em controlar a excessiva taxa de crescimento dos gastos correntes do setor público - em parte, porque muitos ainda acham que isto não é problema, mas solução para o ¨raquitismo¨ do Estado, o crescimento da economia e a sustentação da base política do governo.
Ao responder a isto em 2008, o presidente Lula já estará, na prática, escrevendo suas cartas a seu sucessor.
Feliz Natal e bom 2009 a todos.
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*Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC E-mail: malan@estadao.com.br