O lobby e o poder visível 21/12/2008
- Gaudêncio Torquato*
O anúncio de que o governo pretende encaminhar ao Congresso, no primeiro trimestre de 2009, um projeto para regulamentar a estigmatizada atividade do lobby no País deve ser entendido como um processo de ajuste da articulação da sociedade organizada junto à esfera político-institucional. Ou, em outros termos, a tentativa de expandir os canais da democracia participativa.
A afirmação é passível de uma saraivada de críticas, pois o lobby carrega forte conotação negativa no ambiente político, sendo associado a corrupção, tráfico de influência, manipulação das estruturas governativas, enfim, apropriação de fatias do Estado pelas forças que usam as armas do patrimonialismo, mazela de nossa administração pública.
Pincemos, para começo de conversa, a lembrança de Bobbio de que a democracia é o governo do poder público em público, jogo de palavras que aponta para a idéia de ¨manifestação, evidência, visibilidade¨, em contraposição à coisa ¨confinada, escondida, secreta¨.
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Arremate do filósofo: ¨Onde existe o poder secreto há, também, um antipoder igualmente secreto ou sob a forma de conjuras, complôs, tramóias.¨
A intermediação de interesses privados junto à esfera pública não é, convenhamos, um fenômeno contemporâneo. Faz-se presente em todos os ciclos históricos, freqüentando, inclusive, os primeiros dicionários da política.
Rousseau, no Contrato Social, perorava sobre a oportunidade de cada cidadão participar nos rumos políticos, garantindo haver ¨inter-relação contínua¨ do ¨trabalho das instituições¨ com as ¨qualidades psicológicas dos indivíduos que interagem em seu interior¨.
Esse é o fundamento da democracia participativa, pela qual os cidadãos e suas representações devem ser livres de coerção para influir de maneira autônoma no processo decisório. De certa forma, o lobby bebe nessa fonte.
O ideário começou a ser conspurcado, à sombra do poder invisível no interior recôndito do Estado, pela confluência de interesses espúrios e alianças táticas entre máfias, grupinhos e castas que se alimentam da corrupção.
Nesse momento, o Estado moral soçobra diante do império imoral.
O rompimento dos diques éticos, vale lembrar, acentuou-se nas últimas décadas, por conta da despolitização e da desintegração das fronteiras ideológicas - características da política na sociedade pós-industrial -, que inauguraram o tempo de administração das coisas em substituição ao governo dos homens.
A densidade ideológica da competição política tornou-se menos forte e o cerco utilitarista em torno do Estado se expandiu, sob um novo triângulo do poder: os partidos (menos contrastados sob o prisma doutrinário), a burocracia administrativa e os círculos de negócios privados.
Os lobbies, desvirtuando-se do ideário original, tornaram-se sinônimo de interesses escusos e negociações espúrias, que, em nossa história mais recente, plasmaram monstrengos e expuseram escândalos.
Ao lado desses desvios se constata, porém, saudável movimentação da sociedade organizada. O ponto de partida para um novo ordenamento social foi a Constituição de 1988, que abriu os pulmões da sociedade, incentivando a formação de entidades e movimentos.
A respiração social propiciou a expansão de novos centros de poder, que passaram a influenciar políticas públicas em diferentes nichos temáticos.
O arrefecimento dos partidos políticos, por sua vez, no fluxo da alienação ideológica, tem induzido milhares de cidadãos a procurar refúgio em núcleos que assumem compromissos mais consistentes com suas expectativas.
Neste ponto, convém destacar o encontro das águas limpas com as torrentes de águas sujas. O joio misturou-se de tal forma com o trigo que, neste momento, a tarefa de separá-los é quase impraticável.
Diferentes tipos de interesse se confundem e conflitam no epicentro das pressões e contrapressões, onde se abrigam as duas cúpulas do Congresso Nacional, o Palácio do Planalto, os Ministérios, as autarquias e as sedes das Cortes do Judiciário.
Nessa malha imbricada, grupos protecionistas, de índole corporativa, reivindicam a salvaguarda de situações e direitos adquiridos, enquanto setores antagônicos tentam transferir uns aos outros ônus e encargos.
O jogo é de soma zero.
É comum os lobbies contarem com a ajuda de grupos incrustados na máquina administrativa, ali alocados por mando e indicação de partidos que formam a base aliada.
Um poderoso grupo atua dentro ou às margens do Estado. Situação típica é a das centrais sindicais, que manobram as rédeas das relações de trabalho, dificultando a flexibilização de regras e a adoção de medidas para aliviar os efeitos da crise.
Se a taxa de imobilismo governamental é alta, o fato decorre da posição assumida por determinados grupos que agem para manter o status quo.
Quando se divisa a proposta de legalizar o lobby, nos moldes praticados nos Estados Unidos, a abordagem que emerge é a da transparência. Os lobistas terão nome, endereço e farão uma articulação aberta, escancarando modos de atuação, identificando grupos e coletividades representadas e a natureza dos interesses envolvidos.
O senador Marco Maciel (DEM-PE) luta, desde que presidiu a Câmara dos Deputados, para regulamentar a atividade. Seu projeto abriga o registro dos profissionais e a prestação de contas. O deputado Ricardo Zarattini (PT-SP) também viu aprovado, há poucos dias, na Comissão de Trabalho, seu projeto sobre a matéria.
O marco regulatório sobre a intermediação de interesses grupais e coletivos junto às esferas da administração pública virá formalizar uma prática hoje informal.
Diminuirá a taxa de corrupção, na medida em que desvendará o que está por trás das máscaras dos interlocutores.
Demandas gerais, difusas, particulares, explícitas ou latentes, passarão pela lupa da mídia.
A publicidade das ações propiciará distinguir o justo do injusto, o lícito do ilícito, o correto do incorreto, o oportuno do inoportuno, gato de lebre.
A democracia estará mais próxima do seu real significado: o regime do poder visível.
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*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político