A "refundação" da Bolívia 27/01/2009
- O Estado de S.Paulo
A inequívoca vitória do presidente Evo Morales no referendo sobre a nova Constituição boliviana, ratificada pela maioria absoluta do eleitorado (entre 58% e 65% segundo pesquisas de boca-de-urna), numa votação sem incidentes, e as exortações do governo de La Paz à unidade não lhe proporcionarão condições melhores do que tinha antes do plebiscito de assegurar a viabilidade da Bolívia como Estado-nação, no sentido universal do conceito.
Pelo contrário, a nova Constituição tem tudo para provocar a exacerbação das divisões étnicas e regionais, com a radicalização das tensões históricas entre as populações indígena e branca, esta última dominante nos Departamentos de Santa Cruz, o maior e mais rico do país, Tarija, Pando e Chuquisaca, onde a Constituição de 411 artigos, concebida para "refundar a Bolívia", nas palavras de Morales, foi amplamente rejeitada.
A Carta institui um "Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário", que soa antes como uma contradição em termos. A Bolívia se transforma numa federação sui generis composta de 37 unidades (uma para cada um dos 36 dos chamados "povos originários milenares", que por sinal não fazem parte das duas grandes etnias do país, quíchua e aimara, e uma para os "originários contemporâneos", ou seja, os brancos). Embora o governo de La Paz continue responsável pelas políticas fiscal, externa, energética e de segurança, os departamentos terão ampla autonomia político-administrativa e sistemas judiciais próprios - a "Justiça comunitária" -, uma receita para o estilhaçamento institucional. Terão ainda voz e voto em decisões sobre a exploração de recursos naturais em seus territórios e a prerrogativa de taxar os empreendimentos que ali se façam. Diversas comunidades já cobram a "tarifa" informalmente.
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Além disso, cada "povo originário" terá representação assegurada, ou seja, cotas, na Assembleia Legislativa Plurinacional, que substituirá o atual Congresso, e no Tribunal Constitucional, a mais alta Corte boliviana, cujos membros passarão a ser eleitos. Uma futura Lei de Autonomias e Descentralização levará a fragmentação a consequências que apenas se podem imaginar. "O mais difícil de assimilar", prevê o sociólogo e analista político boliviano Roberto Laserna, em entrevista publicada domingo no Estado, será "a divisão oficializada da população em indígenas e não-indígenas". É bem verdade que, em comparação com a Constituição bolivariana dos sonhos do coronel Hugo Chávez, que a maioria dos venezuelanos rejeitou no referendo de dezembro de 2007, a Carta de Morales é menos atentatória às liberdades políticas e civis dos bolivianos. O texto, por exemplo, dá ao presidente o direito de disputar a reeleição uma única vez (o próximo pleito para o mandato de 5 anos será em dezembro).
Mas a pulverização do país e o tratamento de cidadãos de primeira classe aos indígenas apontam para o caos institucional e a perenização de históricos antagonismos étnicos e geográficos. Isso sem falar no desastre programado da economia. Ao erigir o Estado como o agente econômico por excelência do país - dando-lhe poderes praticamente incontrastáveis para decretar nacionalizações, a pretexto de "necessidade pública" -, a Constituição exprime tamanha hostilidade à iniciativa privada a ponto de autorizar o prognóstico de que não apenas os investidores estrangeiros, mas também as empresas particulares bolivianas serão tratadas como indesejáveis. Para começar, as concessões no setor de mineração terão de ser revistas, com a renegociação dos contratos de exploração de petróleo e gás - doravante, as concessionárias só poderão prestar serviço para a estatal YPFB.
As propriedades rurais deverão ter utilidade "econômica e social", o que o governo poderá definir em cada caso como lhe for mais conveniente. Numa pergunta separada, os eleitores foram chamados a dizer se a área máxima de um empreendimento agrícola deve ser de 5 mil ou de 10 mil hectares. O limite, no entanto, não será retroativo. Segundo as pesquisas de boca-de-urna - o resultado oficial da consulta será conhecido nos próximos dias -, a alternativa dos 5 mil hectares foi preferida por 79% do eleitorado. Pelo visto, a Bolívia conhecerá tempos ainda mais "interessantes", como dizem ironicamente os chineses, do que os atuais.