Obsolescência da Lei de Crédito Rural 02/02/2009
- Mauro de Rezende Lopes*
A Lei de Crédito Rural (Lei nº 4.829, de 5/11/1965) celebra 43 anos e não atende às necessidades da agricultura de hoje. Tampouco contribui para a solução dos atuais problemas do endividamento agrícola -- transferiu a tarefa de cuidar do assunto ao Conselho Monetário Nacional (artigo IV, inciso IV) e do tema nada mais tratou. A agricultura agora é outra, muito diferente da dos anos 1960.
Por que os agricultores estão tão endividados? Além das três secas desastrosas e sucessivas de 2003 a 2006 -- nada nunca visto na história --, há outras causas: 1) Uma profunda mudança estrutural na agricultura, atualmente um dos três setores mais capital-intensivos da economia; 2) as necessidades de capital fundiário são outras, como porte das máquinas, escala de produção, necessidade de utilização de insumos modernos e caros e terra compatível com a escala da mecanização; 3) a luta pela sobrevivência está na produtividade; 4) a própria concorrência está nos elevadíssimos níveis de tecnologias biológicas e mecânicas, etc. Como os produtores podem deixar de fazer pesados investimentos?
Somem-se a tudo isso alguns fatos: 30% do que o Brasil produz se destina à exportação, somos vulneráveis a preços externos, o câmbio sobrevalorizado é um imposto sobre a produção, os nossos juros são os mais altos do mundo, etc. Os riscos são outros e a escala técnica aumentou muito.
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Mesmo sem o apoio do crédito rural clássico, o agro não deixou de crescer. De 1967 até hoje, em termos reais, o crédito rural decresceu de R$ 92 bilhões para os atuais R$ 64 bilhões. Enquanto isso, no mesmo período, a produção partiu de 49 milhões de toneladas, atingindo 143 milhões de toneladas - o crédito rural reduziu-se pela metade e a produção agrícola triplicou (2,92 vezes). Os produtores se endividaram, sim. Têm passivos onerosos, mas têm também bons ativos a mostrar.
Hoje é preciso mudar muitas concepções no funcionamento dessa lei, há outros pontos a considerar. O processo de execução de dívidas agrícolas com máquinas parece sumário. Há a liquidação extrajudicial. O artigo 587 do Código do Processo Civil (Lei nº 11.382/2006) reformou o artigo de mesmo número da lei anterior, incluindo este trecho: "É definitiva a execução fundada em título extrajudicial ..." (sendo provisória enquanto houver apelação de sentença...). Ou seja, títulos representativos de vendas de máquinas, por exemplo, podem ser levados a juízo e ser solicitadas as providências judiciais cabíveis para a retomada do bem. Além do mais, as propostas de renegociação de dívida são unilaterais e impostas aos produtores. Esse tipo de atitude fere o bom senso.
Nossos estudos revelam que deveria haver três níveis de renegociação e execução de dívidas agrícolas. No primeiro haveria o desejo (direito) do produtor de liquidação do seu negócio; no segundo, a possibilidade de uma reestruturação com a manutenção do produtor na atividade; e no terceiro, a proposição de o produtor oferecer uma alternativa de repagamento dentro das suas possibilidades. Os detalhes do estudo esclarecem melhor esses casos.
No primeiro caso haveria a possibilidade de o produtor, por sua própria vontade, abandonar a agricultura. Liquidar o seu negócio. No entanto, mesmo nesse caso, ser-lhe-ia facultado reter pelo menos parte do seu capital fundiário, de modo que pudesse continuar na atividade, porém no nível, vamos dizer, de um "módulo ideal", que é aquele que combina as possibilidades financeiras de gestão do capital, das máquinas e da terra que ele precisa para produzir menos e melhor. Em outras palavras, ele poderia reter alguns ativos produtivos que lhe permitissem continuar na atividade numa escala bem mais eficiente.
Nossos estudos contemplam ainda uma segunda possibilidade: seria a de uma negociação em condições nas quais o produtor continuaria trabalhando na atividade, porém promovendo uma reorganização do seu negócio e uma reestruturação dos débitos perante seus credores. O produtor permanece na posse e no controle dos seus ativos produtivos enquanto negocia com seus credores a reestruturação dos seus débitos em condições que ele possa pagar. O plano seria negociado e sujeito a confirmação por um sistema de arbitragem, contemplado em nossos estudos, com algumas alternativas - isso é essencial. Esse seria um caso específico que necessitaria de uma reestruturação dos débitos. Sendo um pouco mais complexo, seria apropriado para estabelecimentos médios e grandes, fazendas corporativas ou negócios de maior porte. Uma reorganização físico-financeira seria o caminho mais adequado para esse caso.
Uma terceira hipótese contempla produtores que conseguem comprovar a existência de renda suficiente para servir à sua dívida, não excedendo determinados limites e pagando os débitos num período de tempo mais elastecido. Essa hipótese, que contemplamos, se adaptaria mais a estabelecimentos rurais de pequeno porte ou de agricultura familiar e exigiria o pagamento a longo prazo.
É fundamental destacar que no segundo e no terceiro casos haveria um "escudo protetor" contra uma ação direta dos credores. Em todos esses casos haveria, ainda, um direito do produtor rural de fazer uma proposta de reestruturação, repagamento ou reabilitação e reorganização da sua atividade, cujos detalhes estão no estudo original. No último caso, adicionalmente, poderia haver a aplicação do crédito supervisionado, que é mais adequado aos estabelecimentos de menor porte. Este é o ponto mais importante da reforma da Lei do Crédito Rural: dar ao produtor a possibilidade de ele se reabilitar perante sua comunidade, reestruturando seu próprio negócio.
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*Mauro de Rezende Lopes é pesquisador e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-RJ). E-mail: mrlopes@fgv.br