Lula e sua própria marola 02/04/2009
- Roberto Macedo*
Não sei o que o presidente Lula dirá hoje, em Londres, na reunião do G-20. Mas, bem ao seu estilo e lembrando recados anteriores, poderia começar assim: "Meus caros companheiros do G-20, no Brasil há uma marchinha de carnaval que diz: Marinheiro, marinheiro / Tenha cuidado com o mar / A vida é tão boa / Viaja na proa / Não faz marola / Pra canoa não virar. Assim, eu quero apelar a todos os companheiros marinheiros aqui presentes, em particular aos branquelos de olhos azuis, para que, por favor, parem com toda essa má onda econômica que criaram - e que eu achava que fosse marolinha, mas já é um vagalhão -, para não virar minha canoa lá no Brasil."
De fato, a crise econômica mundial se mostra como um vagalhão que veio dos países desenvolvidos, em particular dos EUA. Mas nós nunca reclamamos da enorme onda de prosperidade pela qual passou a economia mundial de 2003 até o terceiro trimestre de 2008, e que muito beneficiou o Brasil. Em particular livrando-nos de um velho problema, a chamada escassez de divisas, que por vezes trouxe crises econômicas ao Brasil, inclusive levando-nos a vários e humilhantes pedidos de socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Foi essa onda de prosperidade, acompanhada de forte expansão do crédito, que levou à enorme valorização de ativos e a movimentos especulativos que por fim sucumbiram. Isso ocorre quando os agentes econômicos percebem que tal valorização carece de fundamentos econômicos, com o que acaba explodindo como uma bolha. Nesse processo, a crise no mercado de hipotecas de segunda linha - as "subprimes" -, nos EUA, foi uma das dimensões desse fenômeno maior e atuou como uma agulha a penetrar a bolha.
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Mas, recorrendo a outro conselho popular, não adianta chorar sobre o leite derramado. Cabe buscar maneiras de sair da crise e, sobretudo, não agravá-la a partir dos nossos próprios pecados. Nisso nosso presidente tem também sua culpa em cartório, pois com sua imprevidente gestão das finanças públicas criou sua própria marola, que já mostra suas consequências e o risco de sérios problemas à frente.
Refiro-me mais uma vez à questão fiscal do governo federal, cuja má situação ficou ainda mais clara com os resultados do primeiro bimestre deste ano, recém divulgados. Em síntese, a combinação de queda de receitas e de aumento de despesas fez com que o superávit primário do governo federal - aquilo que o governo procura reservar para pagar parte dos juros da dívida pública e evitar um déficit final maior - caísse 85,1% (!) nos dois primeiros meses de 2009. Em particular, no mês de fevereiro o governo federal registrou déficit primário de R$ 926,2 milhões, o primeiro nesse mês em 12 anos!
Na sua natureza, esse agravamento revela um sério problema. Segundo cálculos do economista José Roberto Afonso, conhecido especialista em questões fiscais, só 1% da deterioração do resultado primário federal foi devido ao aumento dos investimentos públicos, cuja expansão é recomendável em tempos de crise econômica. Os principais culpados foram a alta das despesas com servidores públicos, por conta da ampliação do número de funcionários e de reajustes salariais em cima de remunerações às vezes já exageradas, e a ampliação do déficit previdenciário.
A perspectiva é de piora desse quadro, pois as previsões são de queda da arrecadação, que depende muito de fontes mais afetadas pela crise, como a indústria e os lucros das empresas. Isso ao mesmo tempo que o governo imprevidentemente instituiu reajustes salariais para seus servidores a vigorar nos próximos dois anos, enquanto que mais um generoso aumento real do salário mínimo deverá agravar as contas da Previdência Social, cuja receita também poderá cair.
Ora, essa marola é tipicamente "made in Brazil", e não há como culpar os companheiros ricos do Hemisfério Norte. Com ela nosso país corre o risco de voltar a aumentar a sua dívida pública como proporção do PIB, revertendo um movimento que vinha contribuindo para a redução do risco país como devedor, inclusive com reflexos favoráveis sobre a situação cambial. E mais: com gastos predominantemente de custeio, e não com os investimentos públicos de que o País tanto carece.
Nesse contexto, e ainda vacilando em cancelar aumentos previstos na folha de salários do governo federal, o presidente Lula gerou manchetes na sexta-feira passada ao dizer, com razão, que "não é hora de trabalhador pedir aumento". Mencionando sua experiência como sindicalista, recomendou "que os trabalhadores contribuam para que as empresas possam recuperar as vendas, em vez de apresentar uma pauta de reivindicações que inclua aumento salarial".
Bem, ele pensou ainda como sindicalista e achou que não é hora de trabalhador pedir aumento. Mas, como presidente da República, patrão de seus funcionários e com a responsabilidade de cuidar dos interesses maiores do povo brasileiro, deveria assumir essa condição e dizer que não é hora de dar aumento, como o fez, comprometendo exercícios fiscais futuros.
Na sua estada em Londres, o presidente bem poderia aprender o significado do termo trade-off. Ele resume bem a situação de pessoas e instituições diante de escolhas nas quais é preciso sacrificar alguma coisa para obter um benefício. A situação atual é desse tipo, pois não é mais possível acreditar no crescimento da arrecadação para fazer benesses de cunho sindical e sócioeleitoral, ademais de ser preciso ampliar investimentos para fortalecer e reativar a economia.
São as crises que realmente testam os governantes, e este é o momento de o presidente realmente demonstrar a que veio e como concluirá seu governo.
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*Roberto Macedo, economista (USP e Harvard), professor associado à Faap, é vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo