Na mesa com os brancos de olhos azuis 06/04/2009
- Marcelo de Paiva Abreu*
Tentativas de comparação da recém-realizada reunião do G-20, em Londres, com a Conferência Mundial de Londres de 1933 não parecem promissoras.
A depressão atual é, por enquanto, mais curta, comparada aos quase três anos que decorreram entre a crise de Wall Street e Londres em 1933. Em um mundo marcado pelo isolacionismo dos Estados Unidos, pelo isolamento da URSS e pela ascensão de Adolf Hitler, a discussão de então era sobre a coordenação das políticas cambiais de Estados Unidos, França e Grã-Bretanha. Na era pré-internet, a conferência de peritos de 1933 trabalhou por seis semanas antes de ser torpedeada por Roosevelt.
A reunião do G-20 é essencialmente parte de um rito. O trabalho substantivo, coordenado por altos funcionários batedores (sherpas), foi realizado com antecedência. E a sua agenda é muito mais complexa do que a dos anos 1930. As taxas cambiais hoje são flutuantes, o arcabouço institucional multilateral é razoavelmente sólido, há grandes obstáculos ao protecionismo impune, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial podem, apesar de tudo, ter papel relevante no alívio de crises de liquidez.
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As incertezas hoje se concentram em temas como a distribuição equitativa dos aportes financeiros nacionais aos pacotes de resgate através do FMI e do Banco Mundial; o efeito destes sobre a posição fiscal e a inflação futura, especialmente nos Estados Unidos; o risco de recrudescimento do protecionismo à margem das regras multilaterais; e como reformar marcos regulatórios nacionais tornando-os compatíveis com um esforço multilateral significativo envolvendo, inclusive, regras que inviabilizem paraísos fiscais.
O governo brasileiro parece ainda indevidamente preocupado em atribuir culpas pelo ocorrido, em vez de concentrar esforços em contribuir construtivamente para a sua superação.
Às vésperas da reunião do G-20 o presidente Lula foi certamente surpreendido com as revelações do primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, sobre suas declarações privadas quando discutiam a presente crise. A mal-educada e imprópria declaração presidencial, que atribuía a culpa da crise ao comportamento irracional de gente branca com olhos azuis, foi colocada em segundo plano pelas declarações de Brown quanto a comentários de Lula que, embora jocosos, revelam a essência de sua ação política. "Quando líder sindical, culpava o governo. Quando líder da oposição, culpava o governo. Quando me tornei governo, passei a culpar a Europa e os Estados Unidos."
O comentário não é de espantar. É da natureza humana realçar os próprios feitos e minimizar os revezes, mesmo que tais revisões biográficas envolvam danos a biografias alheias. Mais ainda na política, com a propaganda ajudando a fazer valer a versão, em detrimento da verdade.
Algo ironicamente, o atual protagonismo de Lula está alicerçado nos princípios de sua ação política, tal como revelados a Gordon Brown. 0 presidente é um notório e bem-sucedido praticante da arte de exportar custos e importar méritos. Depois de apedrejar por longo tempo as políticas econômicas do governo anterior, adotou-as com desenvoltura e pôde se apresentar à opinião pública mundial como líder de um país cuja economia tem razoável solidez relativa em meio à crise atual.
Deixando de lado as frases de efeito, qual seria a essência da posição brasileira em face da crise mundial e das políticas que devem ser adotadas para revertê-la? Em termos gerais, o Brasil luta pela consolidação do G-20 como foro político alternativo ao G-7+1, e pelo aumento da influência das economias emergentes nos organismos econômicos e financeiros internacionais, especialmente no Fundo Monetário Internacional.
A questionável representatividade do G-7+1, que, por razões inerciais, inclui países como a Itália ou o Canadá, justifica expectativas de que o G-20, ou talvez um G-7+1 recauchutado, mas não tanto, possa ganhar espaço permanente. Há, entretanto, incerteza quanto à real acomodação de assimetrias de poder de barganha. E, também, quanto à representação dos interesses do mundo subdesenvolvido pelos emergentes incluídos no G-20, tema que se mostrou penoso na Organização Mundial do Comércio (OMC). O aumento da influência dos emergentes no FMI será um teste objetivo sobre quão concreta é a mudança de postura dos países desenvolvidos quanto à correspondência entre influência (medida em votos) e peso econômico.
A ação do Brasil tem se concentrado na denúncia do protecionismo e no endosso do protagonismo de Nicolas Sarkozy quanto à reforma do marco regulatório financeiro. Sarkozy é um adepto da diplomacia midiática, estilo que combina bastante bem com as idiossincrasias tradicionais do Quai d?Orsay. Nisso, a sintonia com Lula parece natural, mas há um conflito básico entre uma aliança estratégica com a França - simpatias estatistas recíprocas e cooperação militar com travo nuclear - e a denúncia reiterada do protecionismo, tema em relação ao qual a França tem tradicionalmente ocupado posição bastante retrógrada. O embaraço da competente ministra das Finanças da França, Christine Lagarde, no programa Hard Talk da emissora de televisão inglesa BBC, ao ser questionada sobre medidas protecionistas em favor do setor automotivo, ilustra os obstáculos a uma efetiva parceria estratégica.
O Brasil mostra dificuldades adolescentes quanto ao uso adequado do seu maior peso na arena internacional propiciado pela política econômica de longo prazo no quadro da atual crise. A estratégia atual ainda não parece eficaz.
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*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio