Juiz que soltou presos em MG deixa a magistratura 27/05/2009
- Blog de Frederico Vasconcelos - Folha Online
Livingsthon Machado, de Contagem, escreve livro sobre a "caixa-preta" do Judiciário: "Se tivesse que decidir sem independência, teria vergonha de continuar sendo juiz"
Afastado do cargo desde 2005, quando determinou a soltura de 59 presos que cumpriam pena ilegalmente em delegacias superlotadas na comarca de Contagem, em Minas Gerais, o juiz Livingsthon José Machado, 46, resolveu abandonar a magistratura. Na época, o caso chamou a atenção para a situação caótica do sistema carcerário brasileiro e desafiou o discurso do governador Aécio Neves (PSDB) de que a segurança pública era prioridade de sua gestão.
Ele alega que foi punido sem direito de defesa, porque o Tribunal de Justiça de Minas Gerais cedeu a pressões do Executivo estadual. Diz que não tem interesses políticos e nega ter desobedecido determinações superiores do Judiciário mineiro. Em abril, Machado recusou a remoção compulsória para uma vara cível. Nesta quarta-feira (27/5), o tribunal reúne-se para deliberar sobre a aposentadoria compulsória do juiz. “Se tivesse que decidir sem independência, de cabeça baixa, de acordo com o que o governador quer ou com o que o tribunal deseja, eu teria vergonha de continuar sendo juiz.”
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Ele diz que o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Gilmar Mendes, está certo ao criticar a situação do sistema carcerário brasileiro. Mas considera o Supremo “elitista”, pois “é insignificante o número de processos que chegam lá em relação à grande massa carcerária”. Machado deverá publicar no segundo semestre o livro “A Justiça por Dentro: Abrindo a Caixa-preta”. Depois disso, pretende levar seu caso a cortes internacionais de direitos humanos.
Em sua edição de hoje, a Folha de S.Paulo publica trechos da entrevista concedida ao editor do Blog em Contagem (MG), no último dia 20/5, cuja íntegra é reproduzida abaixo:
O que o levou a ser juiz?
- Costumo dizer que foi um acidente de percurso. Durante quase 10 anos fui detetive de polícia (corresponde hoje ao agente policial), fui advogado trabalhista e promotor. Em 2003, prestei concurso para a magistratura.
Qual era a situação carcerária quando o sr. assumiu a vara de execuções criminais em Contagem, em 2005?
- À época, existiam seis unidades prisionais (em delegacias de polícia) e uma penitenciária de segurança máxima. As seis delegacias tinham presídios em situação irregular. Num distrito policial, em razão do excesso de presos, o delegado colocou uma grade no corredor, que virou uma cela abrigando 28 presos.
Por que o sr. determinou a primeira soltura de presos?
- Naquele distrito, 16 presos cumpriam pena ilegalmente. Determinei a transferência desses presos depois que o Ministério Público pediu a interdição do presídio. Como foi vencido o prazo e não houve a transferência, expedi 16 alvarás de soltura.
Qual foi a reação?
- O Estado, através da procuradoria, ajuizou um mandado de segurança junto ao tribunal, dizendo que aquela decisão contrariava o interesse público. O desembargador Paulo César Dias deferiu a liminar.
O mandado de segurança era o instrumento adequado?
- Não. Caberia um recurso chamado agravo. Mas, apesar disso, foi concedida a liminar. Ele suspendeu o mandado de soltura. Quando chegou a liminar, a ordem já havia sido cumprida.
Esse foi o único caso?
- Duas semanas depois, a situação em outro distrito policial era caótica. Doenças contagiosas impediam os presos de serem transportados até o fórum. Em quatro celas, cada uma com capacidade para quatro presos, havia 148 recolhidos, dos quais 39 aguardavam havia quatro anos transferência para a penitenciária. Também expedi mandado de soltura em relação a esses 39. Novo mandado de segurança foi impetrado e nova liminar foi concedida. Quando a liminar chegou, essa ordem ainda não havia sido cumprida.
Como o governo do Estado acompanhou esses fatos?
- À época, o governador do Estado fazia propaganda aqui de que a segurança em Minas era prioridade. Disputava uma vaga em seu partido para concorrer à Presidência da República. A imprensa criou um certo tumulto. Houve uma série de pressões.
Ficou caracterizado que houve desobediência sua?
- A alegação foi que eu desobedeci reiteradamente a decisão do desembargador. Não houve isso. No dia 22 de novembro de 2005, um juiz corregedor me ligou, avisando que eu seria afastado no dia seguinte.
Houve procedimento disciplinar para afastá-lo?
- Não. Nem sequer havia representação ainda. Fui afastado sem qualquer possibilidade de defesa. Só fui intimado para responder esse processo em março do ano seguinte. Em setembro de 2007, a Corte decidiu pelo meu afastamento, sob a alegação de que eu desobedeci reiteradamente ordem de segunda instância. Apesar de a lei dizer que juiz só pode ser afastado por decisão da maioria absoluta, ou de dois terços, esse quorum não foi alcançado no dia do julgamento.
Como o tribunal aplicou a sanção?
- Aplicou uma regra do regimento interno, que diz que a decisão deve ser tomada pela média dos votos. Só um desembargador, José Carlos Moreira Diniz, examinou as provas. Votou pela absolvição.
O sr. teve acesso a algum documento que caracterizasse pressão do governo?
- Tive depoimentos, informações na imprensa. Uma das pessoas que me procurou trabalhava na secretaria de Defesa Social. Ela me disse que presenciou todos os telefonemas para o tribunal, cobrando o meu afastamento. Informou que esse afastamento foi negociado pelo tribunal que, na época, precisava de dotação orçamentária para construir a nova sede. Logo depois do meu afastamento, foi noticiada a dotação orçamentaria.
Como o Ministério Público atuou no caso?
- O MP nomeou uma comissão de 10 promotores para apurar possíveis crimes que eu teria praticado. Veja: quando foi assassinado um promotor em Belo Horizonte, a procuradoria designou 3 promotores para apurar o crime. Quando foram mortos aqueles fiscais em Unai, a comissão foi composta por 5 promotores. No meu caso, nomearam 10. E quem apura crime de juiz não é promotor, é o tribunal.
Houve outros indícios de pressão?
- O desembargador corregedor, Roney Oliveira, que foi meu professor de pós-graduação, mandou recado dizendo que queria retirar a representação. Disse que só fez a representação porque não suportou a pressão de ligações do Palácio do Governo.
Como vê a afirmação de Aécio Neves, à época, de que o sr. fazia “proselitismo pessoal”?
- Eu não tenho disputa nenhuma com o governador. Não sou amigo nem inimigo. Não tenho pretensão política nenhuma. Não tenho por que fazer proselitismo pessoal. Não sou candidato, nunca fui. Não tenho simpatia nem antipatia por ele. Não o conheço pessoalmente.
Qual foi a reação da magistratura de primeiro grau?
- A associação dos magistrados fez uma nota depois do meu afastamento, dizendo que era inadmissível aquela ingerência. Houve demonstrações de solidariedade de juízes de outros países.
Algumas análises sugerem que o seu objetivo foi chamar a atenção para a situação carcerária do Estado.
- Independente de chamar a atenção ou não, eu faria. O Brasil todo passa por situação semelhante. Há um descaso para com a população carcerária, sem dúvida. Mas o pior de tudo é o desrespeito com o texto constitucional, com a ordem jurídica. O que eu fiz foi cumprir o dispositivo constitucional de que a prisão ilegal deve ser imediatamente relaxada pela autoridade competente.
Como o sr. vê o discurso do ministro Gilmar Mendes em relação à situação carcerária?
- O ministro é de uma linha de pensamento de um colega dele da corte constitucional alemã, Winfried Hassemer, que tem uma obra chamada "Direito Penal Libertário". Gilmar Mendes fez a apresentação dessa obra para o português. Ele diz mais ou menos o seguinte: não se deve usar o processo como meio de constranger, de punir alguém, quando a pena já se mostra inviável. Eu cito esse trecho no meu recurso ao CNJ e, na época, ele não fazia parte do conselho. Eu acho que é correto. Quando ele diz que aproximadamente um terço da população carcerária nacional está recolhida indevidamente, está sendo modesto, tímido. Quando um terço ou metade continua aguardando que seja expedido o mandado de prisão, continua-se fomentando a corrupção. A imprensa diz que Gilmar Mendes está querendo proteger bandido, botar bandido na rua. Não é essa a questão. A questão é que é preciso garantir prisão para quem deve estar na prisão. Nesse aspecto, está correta a posição dele. Só acho que o STF é muito elitista, os processos que chegam lá são insignificantes em relação à grande massa carcerária.
Como o sr. recorreu dessas decisões?
- Assim que o tribunal decidiu me afastar, aleguei, em mandado de segurança aqui no tribunal, que é o caminho cabível. Foi denegado. Contra essa decisão, impetrei um recurso ordinário que tramita no STJ. O relator é o ministro Arnaldo Esteves. O recurso ainda aguarda a boa vontade para que ele decida. Publicada a decisão do tribunal daqui, entrei com recurso no CNJ em 10 de outubro de 2007. Ficou um ano e meio sem o então corregedor, Cesar Asfor Rocha, despachar. Foi distribuído ao relator Paulo Lobo que, depois de alguns meses, disse que não conhecia da revisão [não seria o caso de julgar], porque eu já havia ajuizado um recurso ordinário no STJ. Ou seja, que eu queria encurtar o caminho através do CNJ...
Mas eram duas coisas diferentes...
- Completamente diferentes. No CNJ, eu alego que não houve desobediência, que não tive direito de defesa. No STJ, contesto a decisão do tribunal, pois o quorum não foi observado. Contra essa denegação do CNJ, há um mandado de segurança no Supremo, o relator é o ministro Menezes Direito, que indeferiu a liminar. Agora, o tribunal em Minas abriu processo para minha aposentadoria compulsória.
Por que o sr. não aceitou a remoção para uma vara cível?
- Porque ainda há recursos importantes a serem decididos. Se eu assumisse, estaria aceitando a punição.
O governo do Estado alega que acelerou a construção de e melhoria de presídios. É verdade?
- Aqui, em Contagem, as unidades prisionais deixaram de existir em 2007. Hoje, só existe a penitenciária de segurança máxima. De certa forma, foi um dos efeitos da ação. Não tem mais preso condenado em delegacia aguardando vaga na penitenciária. Foi criado um centro de internação provisória. Mas num distrito objeto de investigação da CPI do Sistema Carcerário, constataram que a situação era tão ou mais grave do que quando fui afastado. Quase dois anos depois do meu afastamento. Recentemente, esse distrito deixou de ser presídio para ser centro de internação provisória.
Quando o sr. decidiu que iria deixar a magistratura?
- A partir do momento em que comecei a desacreditar, quando vi a Constituição sendo rasgada. Eu entendi que a minha defesa na advocacia poderia ser melhor do que na magistratura.