Casuísmos na loja de conveniências 31/05/2009
- Gaudêncio Torquato*
Bismarck (1871-1918), o estadista mais importante da Alemanha do século 19, conhecido pela alcunha de chanceler de ferro, tem uma frase muito conhecida: "Se os cidadãos soubessem como são feitas as salsichas e as leis não dormiriam tranquilos." Chico Heráclito, o último dos coronéis nordestinos, apelidado de Leão das Varjadas, também sabia dizer coisas marcantes. Eis uma: "A lei é como a cerca, quando é forte, a gente passa por baixo; quando é fraca, a gente passa por cima." Se os brasileiros tomassem conhecimento das costuras para remendar o tecido legislativo do País, ao contrário dos alemães, dormiriam muito tranquilos. Pois aqui o que vale é a filosofia do velho coronel de Limoeiro (PE). Enquanto na Alemanha é quase tudo proibido, salvo o que é permitido, entre nós tudo é permitido, mesmo o que é proibido. Por estas plagas sempre se dá um jeitinho de passar pela cerca, seja a fechada com seis arames farpados, seja a esboroada.
Não é de admirar, portanto, que, a um ano e quatro meses das eleições, apareçam os primeiros candidatos a querer pular a cerca em torno do Planalto, ensaiando enredos com o propósito de criar curvas na reta traçada para alcançar o pódio presidencial em 2010. A primeira peça versa sobre o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio. A segunda trata da prorrogação do mandato dos atuais governantes - prefeitos, governadores e do próprio presidente -, sob o argumento de que eleições custam caro e os cofres públicos não suportam pleitos de dois em dois anos. (Como se isso fosse empecilho nestes tempos de gastança.) A tentativa de pular a cerca por cima tem um pouco de encenação e muito de ambição. Ambas as propostas apontam para o que os franceses chamam de casuisme, conduta de acomodação hipócrita, que objetiva subordinar o interesse geral ao oportunismo privado. O casuísmo abusa de falácias para fazer valer jogadas escusas. Vejamos como ele se fazia presente nas antessalas do poder.
Em 1968, a ditadura militar, para conter a onda de greves e protestos, selecionou 68 municípios estratégicos para a segurança nacional, escolhendo a dedo os prefeitos. Com a fragorosa derrota de 1974, o governo Geisel criou a Lei Falcão, abolindo os debates políticos. Em 1976, a nova derrota nas urnas impôs o fechamento do Congresso e a modificação das leis eleitorais. As bancadas do Nordeste passaram a ter maior peso na Câmara e no Senado. E aí surgiu a figura do senador biônico. Na esteira dos casuísmos, ainda se conta a anulação de votos destinados a prefeitos e governadores de partidos diferentes em 1982. Os prefeitos e vereadores nesse ano tiveram novamente o mandato prorrogado (de 1986 para 1988) e as eleições gerais foram adiadas em dois anos. O motivo? Para não haver coincidência entre eleições municipais e eleições estaduais. A Constituição de 88 consolida o quadro geral das eleições, estabelecendo, ainda, o segundo turno em cidades com mais de 200 mil eleitores onde nenhum candidato tenha superado 50% de votos válidos, permanecendo apenas os dois mais votados.
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Mas o gostinho pelos dribles efetuados pelos presidentes militares continua acendendo vontades. Os casuísmos reaparecem com intensidade neste momento, agora por conta das dúvidas que cercam a candidatura da ministra Dilma Rousseff. Ela irá ou não até o fim? Seu estado de saúde abre o apetite dos partidos. Mesmo diante das chances de cura (formidáveis, segundo as pesquisas), a pré-candidatura da mãe do PAC se esgarça em fumaça que se espalhará pelo ar até princípios do próximo ano. Especulações, fluxos e refluxos, balões de ensaio, plantações noticiosas, engajamento e desmotivação de bases darão o tom. Haverá jura de fidelidade e traição. É evidente que o presidente Lula, por mais convicto da firmeza do projeto com a inclusão da chefe da Casa Civil, age com o instinto apurado de águia. Ele aprecia o jogo do faz de conta. Enxerga o coelho do alto da montanha, sabe onde caçá-lo, como fisgá-lo e para onde levar a presa. Avalia, por exemplo, que, se cooptar a maior fatia do PMDB, a candidatura Rousseff disporá do maior tempo de rádio e TV - uma loteria para alavancagem de campanha majoritária - e forte capilaridade. Não por acaso, acaba de jogar mais uma flecha no coração do partido, ao botar o ministro das Comunicações, Hélio Costa, na roda, sugerindo-o como um dos nomes peemedebistas a integrar como vice a chapa governista. Minas Gerais, é oportuno lembrar, é o segundo colégio eleitoral do País. E se Dilma tiver de ser substituída? Lula terá de pinçar o substituto em outro partido. Ou, quem sabe, ele mesmo? Quando ele garante que não deseja, enxerga a volta em 2014. Porém, ao pensar sobre o tamanho da confusão - diante de eventual afastamento de sua ministra -, põe lenha na fogueira.
Daí a conveniência - inclusive para o presidente - de casuísmos. Interessa-lhe um ambiente político confuso e polifônico. Mas nem ele, com seu reconhecido instinto para driblar circunstâncias, consegue evitar excessos. Basta olhar para os exageros dos dois ensaios casuísticos da lavra de parlamentares governistas. Inventar prorrogação de mandatos só tem uma serventia: amedrontar as oposições e distraí-las com firulas, fazendo com que percam tempo para retirar o bode da sala. Quanto à peça do terceiro mandato, vale dizer, tem algum fundamento. O mandatário-mor detém ampla aceitação popular, conserva força de manobra para aprovar a realização de um referendo - mecanismo constitucional que ampara a democracia direta -, podendo, se for o caso, obter três quintos dos votos na Câmara dos Deputados para mudar a Constituição. A barreira será o Senado, onde os três quintos serão difíceis de conquistar. Mais dois argumentos contrários: a mancha que Lula faria em sua biografia e a ressonância negativa por parte da mídia. Núcleos de formação de opinião, a partir dos membros da mais Alta Corte (STF), começam a denunciar a ameaça do terceiro mandato para o sistema republicano. Em suma, Luiz Inácio começa a viver o maior dilema de seu mandato.
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Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político