O colapso da outra GM 02/06/2009
- Fernando Canzian*
O jornal de economia "Gazeta Mercantil" deixou de circular nesta semana, afundado em dívidas, discussões desagradáveis entre o dono da marca, Luiz Fernando Levy, e a empresa que vinha controlando a sua publicação, a CBM (Companhia Brasileira de Multimídia).
É uma pena. Mas é também uma façanha que tenha durado tanto tempo. Mais uma prova cabal de quão rústico e incompetente ainda é o capitalismo brasileiro.
As dívidas trabalhistas do jornal são imensas (fala-se em R$ 200 milhões) e, aparentemente, não houve recolhimento de impostos previdenciários em muitos casos, e durante anos. Isso revela também quanto nossas autoridades são, no mínimo, condescendentes com o não cumprimento da lei.
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Verde de inexperiência e fascinado com o ambiente da Redação, comecei a trabalhar como jornalista na "Gazeta Mercantil" em 1986, pouco depois de completar 19 anos de idade, ainda cursando a faculdade.
Não havia computador e as matérias eram redigidas em laudas (folhas de papel numeradas), coladas umas às outras (os "gomeiros" ficavam sobre as mesas). Gritávamos "DESCE!" quando as reportagens estavam prontas. Alguém passava e recolhia aquilo, enrolava e descia (de fato) por um pequeno elevador à sala de linotipos para a impressão.
Foi o ano do Plano Cruzado, do ministro da Fazenda Dilson Funaro querendo caçar bois em pastos para evitar o desabastecimento, das listas de preços congelados e do acidente da usina de Chernobyl. Mas foi também o início de uma longa aprendizagem, que dura até hoje.
Lembro de cor o número do telefone do doleiro para quem ligava diariamente para pegar a cotação da moeda norte-americana no mercado paralelo, ou "negro". É o mesmo número até hoje. Só foi acrescentado um 3 na frente. "Tradição nesse mercado é tudo", diz minha velha fonte.
No final dos anos 1980 e início dos 1990, a "Gazeta" foi uma escola de jornalismo privilegiada. O seu mais brilhante egresso, o jornalista Celso Pinto, foi o principal responsável pela fundação do maior concorrente da "Gazeta", o jornal "Valor Econômico", parceria entre o Grupo Folha e as Organizações Globo.
Na "Gazeta", os mais jovens eram doutrinados a trabalhar sempre com uma gravata amarrada ao pescoço e a desaparecer da Redação. "Lugar de repórter é na rua", dizia nosso duro chefe geral, o espanhol radicado no Brasil Matias Molina (que tinha uma secretária linda).
Fazia minhas reportagens de moto, numa velha Yamaha TT 125 branca. Ninguém entendia como podia ir e vir tão rápido em São Paulo.
É incrível. Mas lá em 1986 os telefones da "GM" já não funcionavam. E os salários atrasavam quase todos os meses.
Eu e minha chefe direta, Angela Bittencourt, editora de Finanças, fomos juntos incontáveis vezes a uma unidade da então Telesp do outro lado da rua, no centro de São Paulo, para fazer entrevistas de telefones públicos. As fontes perguntavam que barulho estranho era aquele a cada período uniforme. Eram fichas caindo. Guardávamos sacos delas em nossas gavetas.
Deixei a "Gazeta" algum tempo depois por conta dos atrasos nos salários para trabalhar em "Veja" e, depois, para um período fora do Brasil. Na volta, retornei ao jornal, mas o quadro já era totalmente insustentável. Isso lá em 1991. Dali, vim para a Folha de S. Paulo.
Em 2005, depois de ler uma matéria na "Gazeta" sobre microcrédito, fui fazer uma pesquisa na internet. Grande parte da "reportagem" publicada no jornal era uma reprodução fiel do press-release de uma ONG do ramo.
É realmente surpreendente que o jornal tenha durado tanto tempo.
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Fernando Canzian, 42, é repórter especial da Folha de S.Paulo