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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Um lulista em El Salvador
03/06/2009 - O Estado de S.Paulo

Nem o venezuelano Hugo Chávez, nem o boliviano Evo Morales e nem o nicaraguense Daniel Ortega foram à posse do primeiro presidente de esquerda de El Salvador, Mauricio Funes, na segunda-feira. Seria o caso de dizer que a ausência do trio bolivariano preencheu uma lacuna. Porque se há uma coisa de que o menor país da América Latina precisa desesperadamente é moderação política, para assegurar a cicatrização das marcas de uma guerra civil de 12 anos entre regimes repressivos e a guerrilha marxista da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) que deixou 75 mil mortos, a que se seguiram duas décadas de governos oligárquicos da Aliança Republicana Nacionalista (Arena).

Mas a ausência de Chávez e de seus apadrinhados numa solenidade a que compareceram numerosos dirigentes regionais (e, pelos Estados Unidos, a secretária de Estado Hillary Clinton) foi sobretudo sintomática. Traduziu o inconfundível desconforto do chavismo diante da ascensão de um líder esquerdista que prega a "sensatez" em um país que, pelo retrospecto de violência política, a desigualdade social e a pobreza extrema em que vivem 40% dos seus 6,9 milhões de habitantes, deveria ser campo fértil para a implantação do "socialismo do século 21". Esse é o mote que serve de pretexto para o coronel venezuelano impor a sua autocracia e reunir seguidores entre os incautos que confundem o futuro com o velho caudilhismo latino-americano.

O fato de a maioria absoluta dos salvadorenhos ter sufragado um candidato como Funes - o ex-jornalista que se filiou à FMLN quando o movimento já havia deposto as armas e se convertido em partido político - não apenas evidencia um grau de maturidade surpreendente para um país com o histórico de arcaísmo típico das estereotipadas repúblicas bananeiras. Representa um vivo desmentido às teorias simplistas segundo as quais, na América Latina, quanto mais uma sociedade arcar com o fardo de um passado do gênero tanto mais a polarização política extrema estará inscrita na ordem natural das suas coisas. E não se pode alegar que Funes iludiu os seus concidadãos.


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Em momento algum de sua campanha (e tampouco depois de sua vitória) se conduziu como um radical, embora proclamasse em alto e bom som os seus compromissos com a promoção da justiça social em seu país. Coerentemente com isso, não hesitou em dizer, no discurso de posse, que "vivemos um tempo de crise de ideologias e falência de modelos". Reiterou os apelos de campanha à união nacional, falando em "seguirmos juntos em uma nova estrada na democracia". Mas o progressismo pragmático de Funes tem, sim, um modelo: o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez uma circunstância fortuita - o fato de ser casado com uma petista de carteirinha desde os anos 1980, Vanda Pignato, ligada à Secretaria de Relações Internacionais do partido - tenha "feito a cabeça" do salvadorenho.

Seja como for, os vínculos de Funes com o lulismo se consolidaram no curso da campanha eleitoral, conduzida pelo marqueteiro do Planalto, João Santana. Depois, Lula enviou a San Salvador o seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, para auxiliar o vitorioso na transição de governo. E ele se prepara para lançar uma versão local do Bolsa-Família brasileiro. Era de esperar que, ao assumir, elogiasse o mentor. Mas, arguto, o associou a Barack Obama como exemplos de dirigentes que devem ser seguidos por encarnar "um caminho novo e seguro". (Como havia prometido, logo ao assumir anunciou o restabelecimento das relações com Cuba. El Salvador era o único país do Continente, além dos Estados Unidos, que ainda não reatara com Havana.)

Repetindo o que o seu mentor havia dito quando assumiu, o primeiro presidente lulista da América Latina afirmou que não tem "o direito de errar". Mas acertar exigirá muito mais dele. À parte as enormes diferenças entre os países, Lula teve a seu favor um ciclo sem precedentes de crescimento econômico global. Funes tem contra si a retração que já afeta duramente as remessas dos seus 3 milhões de compatriotas expatriados, vitais para a economia nacional, e que interrompeu um processo de diversificação das exportações salvadorenhas. Resta esperar que a sensatez com que pretende orientar o seu governo amenize o baque.

  

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