A democracia prevaleceu 20/06/2009
- O Estado de S.Paulo
Sejam quais tenham sido as razões por que o presidente Lula rejeitou a possibilidade de mudar as regras eleitorais para se habilitar à disputa de um terceiro mandato consecutivo - sinceras convicções democráticas; receio de pagar um preço político exorbitante pela aprovação da emenda continuísta, tornando o desgaste da aventura incompatível com o seu benefício; expectativa de eleger a sua candidata Dilma Rousseff; sair consagrado do Planalto; permanecer na cena mundial e voltar para lá em 2014; ou um pouco disso tudo -, o fato é que a recusa diz algo "deste país", uma de suas expressões favoritas.
Meses de escândalos no Congresso Nacional - dos quais o mais sênior de seus membros, na presidência do Senado, tem o desplante de se apartar, como se fosse um obscuro suplente de passagem pela Casa, e ainda recebe do titular da República uma solidariedade escarnecedora das instituições - não criam um cenário exatamente favorável a que se fale em amadurecimento da vida política brasileira. O mero enunciado decerto soará como manifestação de humor negro ou sintoma de privação das faculdades mentais. Não obstante, é verdade.
Fosse o Brasil equiparável a diversos de seus vizinhos em matéria de manipulação dos preceitos do jogo democrático em benefício dos detentores do poder, a escolha de Lula teria tudo para ser outra, porque nenhuma das hipóteses mencionadas se configuraria caso a sua decisão fosse a de desfrutar de um terceiro mandato a partir de 2011. Para um presidente com índices recordes de popularidade, os riscos no caminho desse objetivo, a que se aludiu acima, ou não existiriam ou seriam descartáveis numa cultura política que considerasse normais e legítimas ambições respaldadas pela vontade das massas.
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Nas democracias menos consolidadas, portanto menos aptas a resistir à ganância de seus dirigentes carismáticos, eles podem ainda se valer dos recursos de poder que a sua própria posição já deixa ao seu alcance para consumar a tentação autoritária. A Venezuela de Hugo Chávez, evidentemente, é o caso de manual dessa tendência. Além do mais, se é verdade que governantes democráticos fortalecem a democracia, a recíproca é também verdadeira: quanto mais enraizados nas forças hegemônicas de uma sociedade os valores democráticos, maior a possibilidade de ascensão de líderes que ou os compartilham ou se fazem identificar com eles.
É o que se vê no Brasil e é o que transparece no modo como se eliminou a manobra do terceiro mandato, sob a forma de emenda constitucional sujeita a referendo popular. O governo escolheu a dedo o relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça na Câmara, o deputado e ex-presidente do PT José Genoino, cujas credenciais democráticas se mantiveram intactas mesmo depois do envolvimento com o mensalão de que é acusado. Escalado para ser fiel às suas convicções, abatendo o projeto, ele fez o melhor da oportunidade de reabilitar a sua imagem. Não porque, tecnicamente, sejam irrefutáveis as suas justificativas para o pedido de arquivamento da proposta, "fulminada de inconstitucionalidade", mas porque o seu parecer é uma límpida sagração dos princípios da democracia - em que prevalece "a certeza das regras e a incerteza dos resultados".
Ao se aplicar aos atuais mandatários, escreveu Genoino, indo ao cerne da questão, "a medida altera as regras do jogo político em andamento no intuito de favorecer determinados resultados". Daqui a pouco, anteviu, "podem propor mais um, outro e mais mandatos, quebrando o princípio republicano". O deputado fulminou o referendo previsto na emenda com uma ideia que condena o chamado "plebiscitismo" a qualquer pretexto. Não é razoável supor, argumentou, que o povo possa decidir um assunto como esse "de forma isenta ou alheia aos interesses eleitorais em jogo, sem se deixar seduzir nem contaminar por esses interesses e paixões e pelo ambiente político específico, no momento da consulta popular a ser realizada".
Removido o espectro da re-reeleição, pois não há hipótese de rejeição do parecer de Genoino, a sucessão seguirá o seu curso natural - apesar das circunstâncias pessoais enfrentadas pela ministra Rousseff. O essencial é que a democracia se consolida no País.