Euclides da Cunha está vivo 27/06/2009
- Cássio Schubsky*
Que falta faz ao Brasil a indignação cívica de Euclides da Cunha! Cento e vinte anos após a Proclamação da República, o gesto de rebeldia e coragem do jovem estudante militar jogando ao chão o sabre-baioneta em protesto contra o ministro da Guerra do Império continua reverberando... Aquele ato solitário de Euclides na Escola Militar, meses antes do 15 de Novembro, foi uma conclamação republicana.
Ainda hoje, tantas mazelas assaltam (e aqui o uso do verbo não é gratuito...) a vida política brasileira que bem precisamos reproclamar a República. Escândalo após escândalo, vinga certa letargia popular, ante a inércia monárquica que contamina nossos nobres parlamentares, que deveriam representar o povo, mas, no mais das vezes, preferem aboletar-se em privilégios e desfaçatez.
Ao ler hoje textos escritos por Euclides da Cunha há mais de cem anos, causa espanto a atualidade das opiniões do autor. A primeira impressão é a de que houve uma espécie de achatamento do tempo: parece que o Brasil de um século atrás continua o mesmo. Ou serão as ideias do escritor tão poderosas, perenes, eternas que resistem ao transcurso dos anos? Ao leitor, o julgamento.
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Ensaísta e articulista de jornal em diversas fases de sua vida - escrevendo, sobretudo, em A Província de S. Paulo e depois, com o advento da República, em seu sucedâneo, O Estado de S. Paulo -, Euclides analisa os fatos com tal acuidade que, se alguns textos, ou partes deles, fossem publicados com referência ao cenário atual, de fato muita gente não perceberia a defasagem do tempo. Os exemplos são gritantes. Vejamos alguns deles.
"Traçadas limpidamente as órbitas de todas as atividades, basta que sobre elas paire a vigilância severa das leis", escreve Euclides da Cunha em crônica de 5 de abril de 1892, no Estado. Eis uma singela aula sobre a transparência da atividade política, que deve ser desempenhada limpidamente, vale dizer, sem atos secretos de nenhum tipo... E cinco dias depois, no mesmo Estadão, apela o cronista para que vigore o Estado de Direito, insistindo no tema: "Voltamo-nos para esta velharia - a lei."
Em várias passagens de sua obra encontramos a expressão de revolta ecológica contra queimadas e desmatamentos. Eis uma: "Temos sido um agente geológico, nefasto, e um elemento de antagonismo bárbaro da própria natureza que nos rodeia." Em outra, acrescenta, revelando que o desdém por nossa flora é antigo: "Prolongamos ao nosso tempo esse longo traço demolidor, que vimos no passado." E que vemos ainda hoje, meu caro Euclides!
Resistem ao tempo tantas injustiças sociais, como o trabalho infantil e o trabalho escravo, e lá está Euclides a reclamar "a urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos".
Gigante é o legado do escritor ao seu povo. O próprio linguajar avoengo, arcaico, empregado por ele, é contribuição valiosa para manter a língua viva, com uma infinidade de vocábulos sonoros, que largam o dicionário para ganhar colorido em seus textos vigorosos.
De outro lado, destacados intelectuais que se dedicaram a pensar o Brasil depois dele beberam em suas obras muitas lições e diretrizes que irrigam as reflexões atuais sobre a sina nacional.
O ranço oligárquico, tão bem observado por Raimundo Faoro em Os Donos do Poder, há mais de 50 anos, e que domina o cenário político brasileiro em pleno século 21, também encontra guarida na análise percuciente de Euclides da Cunha, como na seguinte passagem: "Sem uma idade antiga, nem média, fomos compartir as primícias da idade moderna; o efeito foi que as nossas idades antiga, média e moderna confundiram-se, interserindo-se dentro das mesmas datas." Aí estão os coronéis com mandato parlamentar - para resumir os exemplos - que não nos deixam mentir...
Observe-se, ainda, a tão propalada cordialidade do homem brasileiro, no sentido conferido a ela por Sérgio Buarque de Holanda, ou seja, de que nossa gente é dotada de uma afetividade desbragada. Também esse conceito é esboçado por Euclides. É o caso de certo trecho de sua conferência Castro Alves e seu Tempo, proferida em São Paulo, em 1907, a convite do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Naquela palestra, com entrada paga pelos estudantes, visando a arrecadar fundos para a construção da herma do poeta dos escravos, Euclides já dizia: "Castro Alves não era apenas o batedor avantajado dos pensamentos de seu tempo. Há no seu gênio muita coisa do gênio obscuro da nossa raça. (...) Não foi o velho genial quem nos ensinou a metáfora, o estiramento das hipérboles, o vulcanismo da imagem e todos os exageros da palavra a espelharem, entre nós, uma impulsividade e um desencadeamento de paixões que são essencialmente nativos. (...) A emoção espontânea ainda nos suplanta o juízo refletido" (grifo nosso).
Inúmeras lições, enfim, deixou-nos o gênio morto há cem anos. E, apesar de todas as agruras de que foi testemunha entre o fim do período imperial e o início da era republicana, o autor de Contrastes e Confrontos (publicado em 1907) manteve-se otimista com o futuro do País, quando previu: ''Firmar-se-á, inevitavelmente, uma harmonia salvadora entre os belos atributos da nossa raça e as fórmulas superiores da República, empanados num eclipse momentâneo; e desta mútua reação, deste equilíbrio dinâmico de sentimentos e de princípios, repontarão do mesmo passo as regenerações de um povo e de um regime."
Oxalá a profecia euclidiana se torne realidade um dia. Nem que para isso sejam necessários mais 120 anos de República...
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Cássio Schubsky é editor e historiador. E-mail: cassio@letteradoc.com.br