A safra de erros na Argentina 06/07/2009
- O Estado de S.Paulo
A Argentina está arriscada a ter de importar trigo no próximo ano, segundo se especula na Bolsa de Cereais de Buenos Aires. O plantio vai mal, por causa da seca e dos problemas financeiros dos produtores. Qualquer país pode precisar da importação de alimentos e alguns dependem essencialmente da produção estrangeira. Não há nisso, em princípio, nenhum mal. Mas o caso argentino é diferente: a conversa sobre a compra de trigo no exterior parece tão estranha quanto um rumor sobre importação de petróleo pela Arábia Saudita.
Mas a imprensa anda carregada de notícias aparentemente estranhas sobre a economia argentina. Até há poucos anos o país era autossuficiente em petróleo e dispunha de gás para abastecer vizinhos como o Chile e o Brasil. Também isso mudou. Nos últimos anos, compromissos de suprimento do mercado chileno foram descumpridos. Agora a Repsol YPF enfrenta processos de empresas brasileiras por ter deixado de fornecer-lhes o gás contratado.
As duas notícias, a do aperto no abastecimento de trigo e a dos problemas do grupo petrolífero, são detalhes de uma única história: a dos muitos desmandos e erros do casal Kirchner em suas intervenções desastradas na economia argentina. Os disparates praticados pela presidente Cristina são apenas uma continuação daqueles cometidos por seu marido Néstor, quando a precedeu como ocupante do gabinete principal da Casa Rosada.
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A Argentina vive à beira de uma crise energética há vários anos e já teve de recorrer ao Brasil para afastar o risco de apagão. Nada mais compreensível e previsível do que essas dificuldades. Afinal, o governo argentino tem conseguido, há alguns anos, desencorajar o investimento em vários setores. Nem o alardeado crescimento recente bastou para entusiasmar os possíveis investidores.
O desestímulo é consequência do voluntarismo populista dos Kirchners. Durante anos tentaram conter a inflação por meio dos velhos, falidos e desacreditados controles de preços. Usaram impostos absurdos, como "retenção" sobre certas exportações, para alimentar o Tesouro e para reforçar o abastecimento interno e deter a escalada dos preços. Poderiam conter as pressões inflacionárias por outros meios, administrando a moeda com maior seriedade e controlando o gasto público, mas preferiram recorrer aos truques da pior tradição latino-americana. É mais fácil impedir o aumento do custo de vida tabelando tarifas de serviços públicos do que adotando políticas menos demagógicas e mais eficazes a médio prazo. A isso se acrescentaram as interferências no comércio de alimentos e, como complemento, a manipulação dos índices de preços ao consumidor, hoje inteiramente desmoralizados. Há anos ninguém leva a sério os indicadores oficiais de inflação.
A presidente Cristina Kirchner desperdiçou boa parte do ano passado num conflito absurdo com os produtores agropecuários, por causa da tributação das vendas externas. Isso custou ao governo um enorme desgaste - não só entre os agricultores e criadores. Esse desgaste, ainda não superado, explica a derrota dos Kirchners nas eleições da semana passada.
Os erros do governo e o longo conflito político enfraqueceram financeiramente a agropecuária e, além disso, desestimularam quem tinha condições para investir. A seca prolongada complicou um quadro já difícil. Neste ano, estima-se um plantio de 2,9 milhões de hectares de trigo, o menor em mais de um século, segundo os dados da Bolsa de Cereais. Outras culturas também foram afetadas.
Quanto à Repsol YPF, o relatório do exercício de 2008 menciona várias dificuldades políticas enfrentadas na Argentina, como a pesada tributação das exportações de hidrocarbonetos, a obrigação de abastecer o mercado interno com preços inferiores aos do mercado internacional e outros inconvenientes causados pela excessiva intervenção governamental. O descumprimento dos compromissos com clientes brasileiros, entre 2006 e 2008, também se explica pela restrição oficial às exportações de gás.
O desastroso populismo dos Kirchners não é, apesar de suas consequências, um caso isolado na América do Sul. Erros muito semelhantes expõem a população venezuelana a dificuldades crescentes. Mas não falta quem se disponha, até no governo brasileiro, a pregar a imitação desses "modelos" devastadores.