Governos, notícia e propaganda 11/09/2009
- Clóvis Rossi*
É evidente que a ofensiva dos fiscais da versão argentina da Receita Federal sobre o grupo Clarín, o principal da mídia argentina, se inscreve no marco de perseguições e/ou ameaças similares em outros países sul-americanos.
A lista é conhecida, o que tornaria redundante relembrá-la, além de tomar espaço de uma tentativa de olhar com algo mais de perspectiva o que está ocorrendo.
Suspeito que uma frase já antiga do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, logo no início de seu primeiro período, explica tudo. Acho até que a frase é, na verdade, de Ricardo Kotscho, seu então assessor de imprensa. Mas como ele nega, fiquemos então com quem a pronunciou publicamente.
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A frase: "Notícia é o que a gente [o governo, os governos] gostaria de esconder. O resto é propaganda".
Bingo
Governos de qualquer definição política-ideológica adorariam, lógico, que a mídia lhes servisse diariamente de palanque eleitoral. Como alguns chatos dão-se ao incômodo de publicar o que eles gostariam de esconder, pimba, deixa de ser notícia, do ponto de vista dos governos, para virar conspiração.
Não que não haja, às vezes, conspirações. Houve, por exemplo, uma brutal conspiração de parte importante da mídia chilena para desestabilizar o governo constitucional de Salvador Allende, inclusive com financiamento da CIA a jornais locais.
O problema é que conspirações de papel em geral não funcionam. No caso Allende, não funcionou. O presidente e sua Unidade Popular (a coalizão formada por socialistas e comunistas, entre outros grupos de esquerda) até aumentou sua votação entre o pleito presidencial de 1970 e as eleições locais três anos depois.
Tanto não funcionou que foi preciso recorrer ao sangue para depor Allende e instalar uma das ditaduras mais selvagens de uma história selvagem como o é a da América Latina.
A ideia de que notícias, se traduzidas como aquilo que o governo gostaria de esconder, são conspiração é muito mais forte, claro, em regimes salvacionistas. Em países em que se está supostamente reinventando a pátria (Venezuela, Equador, Bolívia), qualquer crítica ou qualquer notícia que não seja propaganda é um crime de lesa-pátria, do ponto de vista do governante.
O que diferencia a situação da Argentina dos três outros países é o fato de que, nos demais, a oposição ou se atomizou ou não tem credibilidade por ser a responsável por levar o país a uma situação tal que se recorre a um "salvador da pátria" porque efetivamente a pátria precisa ser salva. Se o salvador vai salvá-la ou não é outra história.
Na Argentina, ao contrário, a oposição ganhou dos Kirchner nas eleições legislativas recentes. O que explica o recuo do governo, que diz agora que a operação no Clarín não foi iniciativa dele, tanto que demitiu dois funcionários da AFIP (a Receita local), jogando o acosso nas costas do, digamos, mordomo.
De quebra, Cristina Kirchner cunhou sua própria frase que poderia ser entronizada em todas as sedes de governo: "Prefiro bilhões de mentiras a ser a responsável por fechar a boca de alguém".
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*Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo