O custo de nossa democracia 20/09/2009
- Gaudêncio Torquato*
A democracia custa caro. E mais: qualquer preço vale a pena para manter as instituições democráticas. As duas afirmações fazem parte do arsenal que, desde os tempos da velha Atenas, no século 5º a.C., se forma para defender o escopo que Churchill designou como "a pior forma de governo, salvo todas as demais que têm sido experimentadas de tempos em tempos". Se o preço da democracia custa, como se diz no vulgo, os olhos da cara, em nossos trópicos, que já foram tristes, o custo a pagar por ela inclui não só a cara, mas tronco e membros. No Brasil, encontra-se sempre por aqui e ali um superlativo que faz a diferença em relação a outros mercados democráticos. Basta ver um dos últimos exemplos na direção do robustecimento de nossa democracia: a superlotação das Câmaras Municipais com mais um lote de 7.343 vereadores. Que ninguém se surpreenda com o sofisma de que a nova leva não implicará aumento de gastos públicos. E o que dizer sobre o fato de que os novos representantes puxarão um cordão de secretárias e assessores, abrindo espaços físicos e organizando estruturas para atender a demandas dos representados?
Por curvas, subidas e descidas caminha a democracia brasileira. Cheia de jeitinhos, acomoda-se às pressões e contrapressões e, como a água do rio, dribla as pedras do caminho. Mas essa condição, vale dizer, se gera contrafações, contribui também para a inventividade da nossa maneira de lapidar os costumes políticos, sendo até consideráveis os avanços que o País registra em campos como o processo eleitoral, em que nossas urnas eletrônicas lideram o ranking da eficiência entre nações democráticas. Acertos numa área e atrasos noutra se amalgamam e, ao final de muita discussão, os instrumentos que regem nossa democracia vão, paulatinamente, sendo aperfeiçoados. A reforma eleitoral que acaba de passar pelo Legislativo, sob a boa disposição da Câmara de apressar a votação do projeto, constitui seguramente uma orientação mais moderna que as normas que têm guiado os pleitos. Só o fato de inserir a rede virtual da internet no processo sem o tacão da censura significa sintonia fina com o espírito do tempo. Destoante é a nivelação da internet com mídias que são concessões públicas, o que a obriga a seguir as restrições impostas ao rádio e TV para debates. Mas o busílis continua sendo o capítulo das doações. Essa ainda é uma área tabu.
A questão do dinheiro é sensível para os políticos daqui e alhures. Entre as razões, aponta-se esta: as democracias contemporâneas, escassas de perfis carismáticos, inauguram palanques para lideranças funcionais - burocráticas e técnicas -, as quais, por sua vez, abrem as portas do poder com a chave do dinheiro. Dessa forma, os custos da democracia se expandem. Vale lembrar que a política como missão, com a finalidade de promover o bem comum, nos termos apregoados por Aristóteles, se transformou em profissão da vida moderna. O verbo servir, inerente à política, passa a incorporar o pronome reflexivo se, alterando a identidade da representação, eis que o ideal coletivo cede lugar ao utilitarismo. As virtudes da política aristotélica - fidelidade, lealdade, prudência, amizade, justiça, modéstia, honradez e generosidade - são substituídas por novos atributos, com origem no apelo material.
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O desenvolvimento social e tecnológico gerou novos polos de poder e a política espalhou os atores por núcleos especializados. A coletividade passou a abrigar teias e comunidades, conjuntos que para obter maior eficácia elegem representantes próprios. Sob essa moldura, o tamanho do cofre passou a ter muita importância na política. O dinheiro desempenha função na montagem dos Parlamentos. As campanhas tornam-se caras. Nos Estados Unidos, grandes e pequenos grupos têm seus parlamentares. Tal base se vale de contribuições dos eleitores. Lá, em países europeus, latino-americanos ou por aqui, o financiamento eleitoral faz parte da agenda. A polêmica espalha-se pelos países, tendo como foco a denúncia do financiamento irregular de campanhas. Entre nós, o tema é floreado com tergiversação, boa dose de hipocrisia e pouca sinceridade.
Sejamos realistas, o apregoado financiamento público já existe por aqui, bastando anotar os recursos do Fundo Partidário providos pelo Tesouro, o acesso gratuito ao rádio e TV e a possibilidade de descontos tributários por parte das emissoras. Além disso, dispomos do financiamento privado. Esse mecanismo agora ganha nova modelagem. A autorização de contribuição direta aos partidos, sem identificação de beneficiados, e divulgação dos doadores seis meses após a eleição, dribla a transparência. Por que não se abrem as doações logo no início das campanhas? Porque o Executivo, com a força de que dispõe para regular e monitorar a articulação entre interesses do Estado e demandas privadas, gera pânico nos eventuais doadores. Apoios a candidatos oposicionistas - alega-se - poderiam gerar retaliação. Daí o manejo para esconder os doadores. Coisa de nossa cultura. Ademais, nestas bandas se elege o candidato. Partidos recebem poucos votos - mais por acomodação do eleitor - e já contam com fundo próprio. Por isso doações por pessoas jurídicas deveriam ser feitas diretamente e com transparência aos candidatos. Precisamos acabar com a mania de tapar o sol com a peneira.
Que fique claro: ao financiamento público somam-se as doações privadas (pessoas jurídicas e físicas) e, ainda, recursos por baixo do pano. O caixa 2, sejam quais forem os montantes de cada modalidade, jamais acabará. Faz parte do DNA de nossa política abrir os cofres do PIB informal. Portanto, se o custo da democracia é x, no Brasil a ele se adiciona um y. Se houvesse maior transparência, o adicional por baixo do tapete diminuiria drasticamente. Mais: essa moeda vai subir em função da tendência de reforço das bancadas corporativas. A conta cairá na lupa dos tribunais. Que continuarão a verificar se o cofre de campanhas foi aberto de maneira correta ou arrombado.
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*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP, é consultor político e de comunicação