Estadolatria versus democracia 17/10/2009
- Mário César Flores
Do absolutismo português à democracia de massa deste início de século, no Brasil sempre foi parâmetro cultural o pretenso direito de esperar o apoio abrangente, se não a dádiva do Estado -- da mão provedora, do protecionismo e emprego público à caridade assistencialista. Vivemos como rotina a sujeição da cidadania ao Estado (à estadania) e sempre admitimos que o progresso depende menos do esforço e sacrifício da sociedade e mais, ou até essencialmente, da iniciativa e de medidas do Estado.
Essa lógica leviatã é refletida na fantasia ufanista da grandeza nacional espontânea em razão da extensão territorial e dos recursos naturais do País. Grandeza, na verdade, virtual, cuja transformação em riqueza útil ao povo depende da correta dimensão da presença do Estado na vida nacional e da competência, da criatividade, do investimento e muito trabalho da sociedade -- ingredientes do excelente desenvolvimento dos Estados Unidos no século 19, de país colonial a primeira potência do mundo, em que o Estado era mais estímulo e regulador do que agente direto: ajudava, não atrapalhava. Se território e natureza fossem riqueza em si, Suíça, Holanda e Bélgica seriam pobres; Luxemburgo, paupérrimo... As manifestações de vaidade poética do Hino Nacional -- "gigante pela própria natureza", "deitado eternamente em berço esplêndido" e "impávido colosso" -- refletem esse ufanismo inebriante. Faltam-lhes um complemento sobre o esforço necessário para que o "impávido colosso" se levante do "berço esplendido" e transforme "a própria natureza" em riqueza, para que o Brasil deixe de ser "o país do futuro", assim classificado há 70 anos por Stefan Zweig, passando ao patamar a que de fato o credencia seu potencial.
Existem na sociedade brasileira as condições necessárias à odisseia da grande transformação, haja vista o razoável sucesso de setores de nossa economia -- é bem verdade que, mesmo eles, em geral fãs das muletas estatais, o cofre provedor e a alfândega protetora... Mas ainda falta muito para engajá-la toda na reorientação da confortável ideia de grandeza como fortuna natural ou propiciada pela mágica estatal, para a efetiva construção nacional. E isso não será fácil enquanto parte ponderável do caráter coletivo continuar dando preferência à expectativa da felicidade impulsionada pelo Estado sobrenatural do conceito expresso há quase 200 anos por Fréderic Bastiat: "O Estado é a grande ficção por meio da qual todo mundo se esforça para viver à custa de todo mundo." Todo mundo mesmo: dos políticos e apaniguados que se sentem com direito ao patrimonial-clientelismo do butim eleitoral, dos segmentos empresariais e seu trabalho associado, apoiados em financiamentos públicos, protecionismo e renúncias fiscais, dos servidores públicos que se creem credenciados às benesses de sócios preferenciais do Estado aos conformados consumidores de assistencialismo.
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Tampouco será fácil enquanto grande parte da sociedade brasileira continuar aceitando, satisfeita, a euforia das ilusões, disseminada pela propaganda narcótica enaltecedora do estatismo salvacionista, que se vale de fatos positivos (entre outros, na moda hoje o petróleo do pré-sal, por muito tempo ainda riqueza virtual do "gigante pela própria natureza"...), metáforas fantasiosas e afirmações grandiloquentes para dissimular as atribulações que castigam o País: a preocupante involução aética da política, cujos efeitos permeiam tudo o mais, a iniquidade social e a exclusão conformada pelas bolsas disso e daquilo, o precário quadro da educação e da saúde (com gente morrendo nos corredores de hospitais públicos -- o que não constrange a previsão de obras grandiosas para eventos esportivos internacionais que deixarão felizes empreiteiras e afins...), o desenfreado desrespeito à lei, do delito trivial à violência e criminalidade epidêmicas, estradas destruídas, portos ineficientes, regime carcerário desumano, Judiciário de lentidão proporcional à sua singularidade no universo salarial brasileiro, Legislativo desacreditado pela semiparalisia e por práticas de (eufemismo delicado) discutível virtude... -- dezenas de deficiências que afrontam a euforia.
Aqui, como em qualquer parte do mundo, não é seguro afirmar que a saga política seja indefinidamente imune à combinação das deficiências do Estado no desempenho de suas responsabilidades com a fé fanática no Estado e a abdicação da cidadania ao Estado, seja imune à frustração psicopolítica do caráter coletivo, propenso à dádiva do "impávido colosso" e do gigantismo "pela própria natureza", ao êxtase do carnaval e feriadão, às ideias paradisíacas de bem-estar natural (da redução da jornada de trabalho, que o "impávido colosso" mágico viabilizaria sem perda de competitividade e sem custo para o consumidor...), a que a euforia ilusória aporta seu alento anestésico.
Não há hoje clima para regimes ao estilo século 20. Mas não se pode afirmar idêntica implausibilidade para o salvacionismo messiânico travestido de legalidade eleitoral-democrática, sob lideranças carismático-sebastianistas hábeis na fórmula romana "pão e circo": o pão assistencialista e o circo do oba-oba eufórico, hoje muito pré-salgado e agora também olímpico, a que a mídia cooptada pela propaganda aporta sua prestidigitação, em especial a TV, cuja imagem dispensa o raciocínio crítico. Tudo no figurino populista-estatista que parece estar voltando à América do Sul, a reboque da Venezuela, após 25 anos de recesso.
Os autoritarismos, da esquerda à direita, sempre estiveram afinados com o estatismo exacerbado e a abdicação da cidadania ao Estado, ambos inconciliáveis com a democracia plena. Até porque, se o Estado é pretendido como provedor onipresente, deve caber-lhe naturalmente a autoridade correspondente -- uma equação histórica de que o Brasil aparentemente não está livre.
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*Mário César Flores é almirante-de-esquadra reformado