Um fatalismo conveniente 23/10/2009
- O Estado de S.Paulo
O presidente Lula é um realista radical. Para governar o Brasil, afirma, quem quer que chegue ao Planalto, "pode ser o maior xiita deste país ou o maior direitista", não terá escolha. Deverá se resignar à realidade política, formando alianças com as forças partidárias dominantes no Congresso, qualquer que seja o perfil - ou a folha corrida - de seus líderes e qualquer que seja o custo dessas barganhas.
"Entre o que se quer e o que se pode fazer tem uma diferença do tamanho do Oceano Atlântico", justificou-se Lula numa entrevista à Folha de S.Paulo.
E, para não deixar dúvida sobre os extremos a que chega o seu fatalismo, a sua crença no predomínio absoluto dos imperativos do poder sobre valores, princípios e afinidades, saiu-se com uma analogia que é puro Lula.
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"Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer", imaginou, "Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão."
O sistema político brasileiro, de fato, conduz a isso - não se chamasse, em linguagem acadêmica, presidencialismo de coalizão. O modelo eleitoral, ao mesmo tempo que incentiva a proliferação de partidos, muitos dos quais mal se distinguem uns dos outros, praticamente impede que a legenda ou a coligação do candidato vitorioso ao Executivo receba, na disputa para as Câmaras legislativas, a proporção equivalente de votos, o que daria ao governante a maioria parlamentar natural.
Mas, em sete anos no Planalto, Lula não moveu uma palha para reformar o sistema que obrigaria Jesus a negociar o apoio de Judas. Ao contrário, com os recursos de poder ao seu alcance, montou a mais enxundiosa base de sustentação da história do Congresso Nacional - e está perfeitamente confortável com a "realidade política" de que tirou proveito e que, em outra encarnação, prometia transformar. Nesse sentido, a teoria lulista da inexorabilidade dos pactos fisiológicos revela a sua conveniência: serve para legitimar a acomodação ao que está aí.
Lula não tem sentimento de culpa - ou o esconde admiravelmente. Perguntado, na mesma entrevista, se sentia algum aperto no peito por ter reatado com o ex-presidente e senador Fernando Collor, depois de todas as baixezas de que foi vítima da parte dele, na campanha de 1989, respondeu friamente que não tem razão para "carregar mágoa ou ressentimento". E tornou a teorizar: "Quando se chega à Presidência, a responsabilidade nas suas costas é de tal envergadura que você não tem o direito de ser pequeno." Em abstrato, o argumento é perfeito. Mas, visto na perspectiva dos fatos desta Presidência, é mais uma racionalização. Está no mesmo departamento de sua justificativa para o apoio ao presidente do Senado, José Sarney, a quem considera um "grande republicano", envolvido em denúncias que, em outras circunstâncias, o teriam apeado do cargo. "A manutenção do Sarney era questão de segurança institucional", exagerou. Se caísse, a oposição faria "um inferno neste país".
Além de ostentar a costumeira autoindulgência, Lula não hesita em desqualificar quem se atreva a questionar os seus atos. O alvo, no caso, foi o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, que chamou de "vale-tudo" a sua campanha antecipada, com recursos públicos, em favor da pré-candidata Dilma Rousseff - cujo maior evento até agora foram os 3 dias de "inspeções" das obras de transposição do Rio São Francisco, na semana passada. Primeiro, disse que "ninguém pode ser contra a Dilma ir às obras comigo". Depois, acusou o ministro de fazer "um debate pequeno". "Cada brasileiro tem o direito de falar o que bem entender", arrematou, "mas vamos continuar inaugurando." Isso também é puro Lula, no que contém de desprezo pela ética e de subordinação dos meios aos fins. (Num discurso, anteontem, ele foi ainda mais rombudo. "Agora desgraçou tudo", disparou, "porque os homens estão ficando nervosos porque nós estamos inaugurando obra.")
Confiante na sua supremacia política, ele se permite tudo. Enquanto isso, a oposição patina na definição de seu candidato para 2010 e frequentemente se mostra intimidada pelos 80% de aprovação popular ao presidente e o renovado clima de otimismo com a economia. Apenas a imprensa parece fazer sombra a Lula - a ponto de levá-lo a dizer que o seu papel não é de "fiscalizar" o poder, mas apenas de "informar". É o retrato de uma mentalidade.