Desde março de 2008 o consumo de álcool combustível, o etanol, supera o de gasolina. Por isso se pode dizer que o Brasil é o único país do mundo onde o combustível "alternativo" é o fóssil e o "principal" é renovável. Isso só foi possível graças à sábia decisão adotada depois do choque de 1975, quando lançamos o mais arrojado programa de substituição de petróleo da época. Hoje misturamos 25% de etanol à gasolina, temos uma frota de carros flex que já alcança 90% dos veículos novos e 37% da frota total e contamos com uma ampla distribuição de etanol puro em todos os postos de combustível.
Estudos recentes trazem dados impressionantes sobre os impactos dessa indústria. Considerando somente a produção do etanol, são 465 mil empregos diretos criados no País, seis vezes mais do que a indústria do petróleo. O etanol está presente em 1.042 municípios, ante 176 no caso do petróleo, o que se traduz em maior distribuição de renda e interiorização do desenvolvimento. Uma simulação feita por professores da USP mostra que 15% de substituição de gasolina por etanol em nível nacional gera 118 mil empregos líquidos, com uma massa salarial adicional de R$ 236 milhões anuais.
Na área ambiental, desde 1975 o uso de etanol em substituição à gasolina permitiu uma redução de emissões de 600 milhões de toneladas de CO2, o equivalente ao plantio de 2 bilhões de árvores. Especialistas afirmam que para cada litro de etanol consumido US$ 0,20 deixam de ser gastos na mitigação de gases causadores do aquecimento global. Um estudo realizado pelo Laboratório de Poluição da Faculdade de Medicina da USP estima que se todos os carros da Região Metropolitana de São Paulo fossem movidos exclusivamente a gasolina haveria um incremento de 400 mortes e mais de 25 mil internações hospitalares por ano, com um custo anual de R$ 140 milhões para o sistema de saúde.
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Uma das razões do bom desempenho dessa indústria foi a liberalização do mercado na década de 1990. A extinção dos controles de produção e preços do antigo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) propiciou importantes ganhos de produtividade e reduções reais nos preços desses dois produtos. O petróleo, ao contrário, além de altamente poluente, torna-se cada vez mais escasso no mundo e, portanto, mais caro.
Uma das consequências complicadas da desregulamentação, todavia, foi o expressivo aumento da volatilidade de preços, tanto em termos sazonais (safra e entressafra) como cíclicos (ao longo dos anos). Ao contrário da gasolina e do diesel, que têm seus preços artificialmente fixados pelo monopólio de facto da Petrobrás, os preços do açúcar, do etanol e da cana sofrem grandes variações de acordo com a lei da oferta e da procura. Nesse aspecto o etanol brasileiro é semelhante ao petróleo no mercado mundial, já que ambos flutuam ao sabor das leis de mercado. Nos últimos dois anos, por exemplo, o que se viu no Brasil foi um ciclo de preços extremamente deprimidos do etanol em razão do forte aumento da oferta decorrente de elevados investimentos em expansão e novas usinas. Se, por um lado, os baixos preços derrubaram a rentabilidade do setor, por outro, eles favoreceram, juntamente com o crescimento da frota flex, um acentuado aumento de consumo, entre 2005 e 2008, de impressionantes 185% de etanol hidratado, ante apenas 7% de gasolina.
Em março deste ano, os empresários do setor sucroenergético reuniram-se repetidas vezes com o governo para discutir formas de estocar o produto, diante da safra recorde que se iniciava e da derrubada de preços causada pela crise financeira global, que abalroou as usinas. Com o balanço da maioria das empresas comprometido pela crise, o programa de estocagem não teve o resultado esperado. Sete meses depois, na mesma safra, chuvas excessivas prejudicam a colheita da cana e o governo fala em reduzir a mistura de etanol na gasolina de 25% para 20%. Leia-se: uma mudança radical de cenários e políticas dentro da mesma safra!
Acontece que o setor sucroenergético tem reagido muito bem aos estímulos e demandas do mercado, aumentando rapidamente a produção e a sua eficiência econômica e operacional para atender à crescente demanda. Salvo a ocorrência de novos volumes absurdos de chuvas até dezembro, não há motivo para alterar o nível de mistura do etanol na gasolina neste momento. Já se foi o tempo do carro movido unicamente a álcool e, portanto, mais vulnerável a problemas de desabastecimento. Hoje os carros são "flexíveis" e o etanol compete com a gasolina pela preferência do consumidor em cada bomba de combustível. Ou seja, o ajuste de mercado ocorrerá naturalmente nos postos, pelas mãos soberanas do consumidor, que hoje pode decidir em função dos preços relativos e dos valores intrínsecos de cada combustível em termos de potência, consumo, clima, saúde pública, etc.
Sabemos, porém, que tanto os consumidores como os produtores desejariam ver menos oscilações nos preços do etanol. Acontece que o etanol é uma commodity agrícola, altamente influenciada pelo clima e produzida durante sete meses para ser vendida o ano todo. Ao contrário do mercado de açúcar, a rigidez das regras de comercialização de etanol dificulta a presença de agentes de comercialização, gera pouca liquidez e enorme volatilidade num mercado primitivo que só funciona no spot diário de preços. É por isso que o setor tem insistido na necessidade de novos instrumentos de comercialização física e futura que gerem maior liquidez e gestão de risco, com a entrada de novos agentes. É preciso também desenvolver políticas tributárias que reconheçam as externalidades socioambientais do etanol para a sociedade, lembrando que ele representa uma das grandes inovações criadas em terras brasileiras.
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*Marcos Sawaya Jank é presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica)