Este mês se completa o primeiro ano da presidência de Barack Obama. Na área internacional, a mais importante iniciativa de seu governo é o engajamento dos EUA em negociações multilaterais visando ao desarmamento e à não-proliferação de armas nucleares, prioridade anunciada ainda em sua vitoriosa campanha para a Casa Branca.
Na vertente do desarmamento, tem sido grande o empenho em redefinir os termos da interlocução com a Rússia. A mudança na qualidade da relação bilateral reflete-se nas negociações sobre o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start, na sigla em inglês). Elas avançaram na direção de novos e mais profundos cortes nos arsenais nucleares dos dois países e devem estar concluídas nos primeiros meses de 2010.
Na linha da não-proliferação, passou-se da ameaça retórica de ataque à tentativa de engajar o Irã em negociações que assegurem à comunidade internacional que o país islâmico não terá armas nucleares. A tentativa de Obama, depois de um promissor início, não produziu por ora os efeitos pretendidos. O Irã recusou a proposta, feita pelos membros do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha, de que grande parte do seu urânio seja enriquecida na França e na Rússia. O prazo para dizer sim encerrou-se em dezembro. Diante da negativa iraniana, já se encontram em fase adiantada as discussões sobre a imposição de novas sanções ao regime islâmico. O ano terminou com o Senado americano prestes a votar projeto de lei que o Departamento do Estado considera excessivamente rígido. Temeroso de perder aliados em sua diplomacia de engajamento multilateral, o Executivo conseguiu adiar a votação, com vista a flexibilizar o projeto. As sanções, no entanto, virão, mais cedo do que tarde.
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Difícil saber se elas serão eficazes desta vez. No passado, não surtiram efeito. Há quem argumente que agora pode ser diferente, por uma combinação de fatores. No plano internacional, pela primeira vez há uma chance real de que contem com o apoio de China e Rússia, países com assento permanente (e poder de veto) no Conselho de Segurança da ONU. Aponta nessa direção a decisão recente da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) condenando o Irã após a descoberta da usina clandestina de Qom. China e Rússia votaram pela condenação: ponto para a estratégia de Obama. Já o Brasil se absteve.
No plano doméstico, também pela primeira vez o regime islâmico apresenta fraturas. Há dissidência aberta de membros da elite civil e religiosa, além de recorrentes manifestações de protesto nas ruas. A dúvida é se novas sanções ajudam ou dificultam o progresso das negociações, já que podem servir de bandeira para o regime reunificar a elite e enrijecer-se numa posição de intransigência.
De uma coisa, porém, ninguém duvida. Os olhos do mundo estarão voltados para o tema do desarmamento e da não-proliferação em 2010. E para o Irã, em particular. Na primeira quinzena de maio, em Nova York, terá lugar a conferência que, a cada cinco anos, revê o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), do qual o Irã, assim como o Brasil, é signatário. Os três encontros preparatórios realizados em 2009 deixam claro que um dos itens centrais da agenda será o "fortalecimento de salvaguardas para impedir a proliferação", entre elas o chamado protocolo adicional do TNP, que aumenta os poderes de inspeção da AIEA. O Brasil tem-se recusado até agora a assiná-lo. Na Estratégia Nacional de Defesa, lançada no final de 2008, a assinatura fica condicionada a que as potências nucleares caminhem no sentido do desarmamento. Obama moveu os EUA nessa direção, trazendo a Rússia consigo.
Nos EUA, a não-proliferação é percebida como questão vital à segurança nacional. Pesquisa publicada em dezembro pelo Pew Research Center (America"s Place in the World 2009) mostra que 77% dos americanos consideram que impedir a proliferação de armas nucleares deve estar entre as prioridades da política externa do país; 85% dos entrevistados dizem o mesmo sobre o combate ao terrorismo.
O grande temor dos americanos é o Irã se tornar um fornecedor de armas nucleares a grupos terroristas ao redor do mundo. Temor agravado pelo peso crescente da Guarda Revolucionária no governo iraniano e pela descoberta da usina clandestina em Qom. A Guarda Revolucionária, berço político do presidente Ahmadinejad, tem notórias ligações com organizações como o Hamas e o Hezbollah.
O mesmo temor de que arsenais nucleares abasteçam o terrorismo explica o aumento da presença militar americana no Afeganistão, ante os avanços do Taleban, que se desdobra pelo vizinho e instável Paquistão, país que tem armas nucleares. É nesse ambiente de alta tensão que se insere o duro recado que a secretária Hillary Clinton deu ao final de 2009 a quem na América Latina "flerta com o Irã". Hugo Chávez não flerta apenas: estabeleceu união carnal entre a Venezuela e o país islâmico. Os dois países têm 270 acordos de cooperação, incluindo a área nuclear. Ao Irã interessam, sobretudo, as reservas de urânio da Venezuela.
O Brasil deve examinar esse quadro com realismo e responsabilidade. Não para abdicar de seu legítimo direito de prosseguir no desenvolvimento de seu programa nuclear, este, sim, para fins pacíficos, como reza a nossa Constituição. Mas, ao contrário, para preservar esse direito e a confiança que desfruta na comunidade internacional.
Até aqui foi possível, sem maior dano aparente, afagar o Irã, abster-se de condená-lo na AIEA, fechar os olhos para as relações de Chávez com Ahmadinejad, recusar-se a assinar o protocolo adicional do TNP e, vez ou outra, dizer uma barbaridade sobre as nossas "ambições nucleares". A partir de agora teremos de definir, sem margem a dúvidas, de que lado estamos neste que é o tema mais sensível das relações internacionais na área de segurança.
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Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP - E-mail: sfausto40@hotmail.com