As estatísticas oficiais, tão cultivadas no Brasil, como se fossem a lei de Deus, não merecem o menor crédito no mundo civilizado, como acaba de descobrir o jornal britânico "Financial Times".
Pesquisa por ele encomendada revelou que só 9% dos britânicos acreditam que os números oficiais estão livres de manipulação politica, ponto-de-vista compartilhado por 13% dos norte-americanos e 15% dos franceses.
Pena que a pesquisa tenha sido feita apenas nos Estados Unidos e em meia dúzia de economias avançadas (Alemanha, Itália e Espanha, além das citadas). Tivesse se estendido à América Latina, o resultado revelaria, com certeza, uma desconfiança ainda maior. Basta lembrar os casos de manipulação de dados da inflação pelo governo Néstor Kirchner, na Argentina, ou exemplo de algo mais antigo no próprio Brasil, durante a ditadura militar.
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O "Financial Times" especula que a desconfiança pode tornar mais difícil adotar medidas econômicas impopulares agora que a crise econômica está sendo dada como superada, ao menos nas estatísticas. Se o público acha que os governos manipulam os números para finalidades políticas, obviamente desconfiarão de medidas que se baseiem neles.
No caso do Brasil e da América Latina, há razões até culturais para a desconfiança: sucessivos governos, em diferentes momentos, recorreram a truques para reduzir a inflação só nos índices oficiais, mas não na vida real.
Além disso, os governos sempre usam números brilhantes para lustrar sua gestão mesmo quando eles não existem de fato. Exemplo muito recente: em palestra em Hamburgo, na Alemanha, no início deste mês, o ministro Guido Mantega anunciou crescimento de 8% anualizado no terceiro trimestre de 2009, o que significaria que o número do terceiro trimestre seria de 2%.
Deu 1,2% na vida real. Note o leitor que o anúncio de Mantega se deu em dezembro, portanto dois meses depois de encerrado o terceiro trimestre, quando todos os dados já deveriam estar apurados e processados.
Se erra sobre o passado, o que imaginar quando o ministro fala do futuro?
Há um segundo exemplo, este de manipulação política das estatísticas. Refiro-me à versão de que vem caindo a desigualdade de renda no Brasil. Falso.
Uma falsidade, de resto, comprovada por economistas do próprio governo. Explico: a medida usual de redução de desigualdade é um tal de índice de Gini, que, de fato, vem melhorando já faz algum tempo.
Mas o índice mede apenas "a diferença entre as rendas que remuneram o trabalho, portanto, não leva em conta as rendas do capital: juros e lucro", conforme escreve João Sicsú, que vem a ser o principal economista do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, instituição do governo).
Passemos agora a palavra ao chefe de Sicsú, Marcio Pochmann, presidente do Ipea: "A parte da renda do conjunto dos verdadeiramente ricos afasta-se cada vez mais da condição do trabalho, para aliar-se a outras modalidades de renda, como aquelas provenientes da posse da propriedade (terra, ações, títulos financeiros, entre outras)".
Então fica combinado que caiu apenas a desigualdade entre os assalariados, que, como explica Pochmann, nem é a mais importante, já que os ricos veem sua renda "afastar-se cada vez mais da condição do trabalho". Moral da história: toda vez que ler que a desigualdade no Brasil caiu, faça como os britânicos e desconfie. Muito.
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*Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo