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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

O lulismo vai ao cinema
14/01/2010 - Eugênio Bucci*

Começo por uma ressalva: o filme Lula, o Filho do Brasil, não é exatamente ruim. A cinebiografia do presidente da República, anunciada como a mais cara produção da história do cinema nacional, conta de modo envolvente a história que se propõe a contar. Emociona qualquer um que deixe uma abertura mínima para ser emocionado. É o que se pode chamar de um filme brasileiro tecnicamente bem feito.

Mas com que caráter? A resposta, por ser óbvia demais, não tem sido levada suficientemente a sério. Lula, o Filho do Brasil existe para promover a idolatria de um mito político - e ergue esse mito ao custo da destruição simbólica da política.

É claro que uma obra de entretenimento, mesmo quando diretamente baseada em fatos reais, como é o caso, pode muito bem virar as costas para a política. Pode optar por uma narrativa romanceada, mais açucarada, não importa. Há obras-primas melosas, inteiramente apolíticas, assim como há mediocridades acachapantes que se perderam na tentativa de retratar com fidelidade as tensões próprias do universo político. O problema não está aí. O problema de Lula, o Filho do Brasil é que ele despolitiza os fatos com o objetivo de sacralizar a pessoa de um político, ou seja, ele despolitiza para fazer proselitismo político. Não um proselitismo programático, mas aquele que se baseia no culto da personalidade. Ele interpela e intima o espectador: acredite nesse homem, independentemente das contradições que ele encerra; confie nesse homem, mas não tente entendê-lo, ele - e não você - é o critério da verdade.


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As evidências do aniquilamento simbólico da política são abundantes ao longo do filme. O protagonista entra no sindicato porque precisa "ocupar a cabeça" para esquecer a dor pela perda da primeira mulher. Despreza olimpicamente a ação dos grupos organizados. O enredo desenrola-se de tal forma que os acontecimentos parecem consequência do psiquismo sentimental do personagem. Estamos diante da saga de um ser acima dos demais, um predestinado, alguém que "chegará lá", um dia, para redimir os semelhantes. Ele não segue programa nenhum, apenas intui o que fazer. Não é de esquerda nem de direita: às vezes fala como um conservador, um defensor da ordem; outras vezes, como quando fustiga os patrões, parece um contestador enraivecido. Às vezes é incendiário, outras vezes é bombeiro, mas sempre luminoso, superior, mítico.

Nesses termos, Lula, o Filho do Brasil vem ilustrar o fenômeno que foi brilhantemente descrito no ensaio do professor André Singer, na edição de número 85 da revista Novos Estudos, do Cebrap: Raízes sociais e ideológicas do lulismo. O lulismo, para o autor, mescla a manutenção da estabilidade econômica e institucional à ação distributiva promovida pelo Estado com vista a reduzir a desigualdade. Os dividendos dessa conduta vieram nas eleições de 2006. O imenso contingente dos muito pobres (famílias cuja renda não ultrapassa dois salários mínimos mensais), o mesmo que garantiu a eleição de Collor em 1989, passou a formar a base de apoio eleitoral do presidente, embora cultive, em seu ideário, valores comprometidos com a manutenção do status quo. Sem guardar nenhum vínculo com teses que pregam a transformação estrutural da sociedade, esse segmento tem mais identidade ideológica com a direita. Não obstante, dá agora sustentação a um governante egresso de movimentos de esquerda. O que pesa, aí, não é mais a consciência de classe, em sentido clássico, mas a identificação pessoal com o líder carismático. Por isso, ao final de seu ensaio, Singer fala em "lulismo despolitizante".

Publicado em novembro passado, o artigo da Novos Estudos não faz nenhuma referência ao longa-metragem, que estreou apenas em janeiro, mas fornece elementos preciosos para discuti-lo. Em Lula, o Filho do Brasil podemos ver de perto que a despolitização mora na raiz da construção do mito. Na tela, a ação programática dos agentes de um novo sindicalismo, que ganha existência entre os anos 70 e 80, vira reles coadjuvante; quem assume a condição de protagonista é o herói melodramático, que conta com a lealdade dos seguidores, qualquer que seja a direção que adote.

Não que o roteiro do filme ignore solenemente o fator político. Isso não se pode dizer. Esse fator aparece, entra em cena, muitas vezes com vigor e contundência, mas invariavelmente subordinado à determinação pessoal do personagem que irá vencer no happy end. Nesse sentido, Lula, o Filho do Brasil se enquadra na categoria das "fábulas populares", conforme elas são definidas por Ítalo Calvino. Diz ele: "O príncipe disfarçado de pobre é a prova de que cada pobre é na realidade um príncipe que sofreu uma usurpação e que deve reconquistar seu reino." No cinema de Fábio Barreto, Lula é desse tipo: um "príncipe" disfarçado de pobre a quem caberá, ao conquistar finalmente o trono, levar justiça e felicidade à sua gente. É assim, como se fosse fábula, que o filme faz a política personalista.

Muitos argumentam que esse longa-metragem é uma peça de propaganda. Têm razão. É propaganda eleitoral, com a vantagem de parecer um produto de entretenimento como outro qualquer, já que não envolveu dinheiro público. Mas o filme nos deixa ver um fenômeno maior que a simples propaganda. O príncipe que ele apresenta tem correspondência numa figura de carne e osso, que existe de verdade e que, em sua vida real, trilhou os caminhos que agora permitem a sua tradução nesse formato de grandiosa fábula popular. Ele não é artificial, não foi criado em laboratório, muito menos é prisioneiro de sua representação estética. Seu poder no imaginário pátrio ultrapassa as classes e seu mito, o lulismo, alça agora um voo maior que a própria política.

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*Eugênio Bucci, jornalista, é professor da ECA-USP

  

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