O futuro e o passado 09/02/2010
- O Estado de S.Paulo
O presidente Lula não pode ser condenado por desejar que a campanha pela sua sucessão seja um confronto plebiscitário entre os seus dois mandatos e os do antecessor Fernando Henrique. "Nós contra eles, pão, pão, queijo, queijo", como disse numa entrevista em outubro passado. Muito menos o PSDB pode ser criticado por não aceitar a agenda eleitoral nos termos estabelecidos pelo adversário. Mas Lula, a sua candidata Dilma Rousseff e o PT devem ser denunciados pela sistemática deturpação dos fatos que pretendem ver comparados. Já o provável candidato José Serra, o ex-presidenciável Aécio Neves e os tucanos em geral merecem ser expostos pelo modo como reagiram à tática lulista de intimidá-los. O nome clássico para esse tipo de reação é fuga para a frente.
Aécio Neves, por exemplo, se apresentava como o "pós-Lula". Serra deixa claro que a única comparação que a seu ver interessa ao povo brasileiro é entre os currículos dos competidores -- a experiência (dele) contra o noviciado (de Dilma). Nem um nem outro afirmou que uma disputa presidencial comporta mais de um eixo: o essencial é o futuro, naturalmente, mas isso não significa ignorar o passado ou desatrelar uma coisa da outra. Trata-se, aliás, de uma repetição: José Serra, em 2002, e Geraldo Alckmin, em 2006, se recusaram a assumir o legado dos anos FHC. Como os petistas não perdem oportunidade de apontar, eles esconderam o ex-presidente. Agora, diante do intento lulista de ditar pela terceira vez as linhas do debate sucessório, reescrevendo a história recente do País, o PSDB tropeçou.
Foi o próprio Fernando Henrique quem tomou a si a tarefa de contestar, ponto por ponto, a versão caricatural do que foram os governos brasileiros dos últimos 16 anos. Em artigo no Estado de domingo -- cujo título, Sem medo do passado, pode ser lido também como uma sutil repreensão ao silêncio dos correligionários -- ele acusa o sucessor de "baixar o nível da política à dissimulação e à mentira". A "desconstrução" do inimigo principal -- principal, argumenta, "porque podemos ganhar as eleições" -- consiste em negar "o que de bom foi feito" e em se apossar "de tudo o que dele herdaram, como se deles sempre tivesse sido". Seguramente não foi apenas a operação em curso de encurralar o candidato tucano que moveu o ex-presidente. Também a legítima preocupação com a sua biografia há de ter pesado na iniciativa.
PUBLICIDADE
No revide à teoria de que o governo "neoliberal" do PSDB travou o desenvolvimento e foi um modelo de insensibilidade social, Fernando Henrique arrolou as mudanças postas em marcha na sua administração, que permitiram a Lula "dar passos adiante". Para concluir que, embora eleições não se ganhem com o retrovisor, "se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa". O desafio produziu efeitos. A ministra Dilma, sem a agressividade costumeira, adotou uma linguagem que, na improvável hipótese de persistir, ajudaria a fazer da campanha uma contenda civilizada. "Não estou desmerecendo ninguém. Sem sombra de dúvida houve passos no governo anterior", ponderou. "O que estou dizendo é que o nosso caminho é melhor."
No PSDB, porém, a renúncia ao caminho percorrido, pelo menos na arena pública, continua a prevalecer. O artigo de Fernando Henrique, comenta um parlamentar da legenda, "é o que o partido vem dizendo internamente". E o presidente da agremiação, senador Sérgio Guerra, investiu: "A ministra tem de esquecer essa história de comparação. Seu desafio é mostrar que é melhor para o País." Tudo indica que, na avaliação tucana, a "briga boa" defendida pelo ex-presidente equivalerá, para o candidato, a cair numa armadilha. Como se muito pior não será ele ouvir calado a reconstrução falsificada da gestão FHC, ponto de partida para a glorificação do governo Lula, de que Dilma seria a continuadora.
Na corrida às urnas, o futuro vem antes do passado. Mas, se o PSDB permitir que o passado vire território de caça exclusivo do PT, correrá o risco de uma derrota não apenas eleitoral, mas política. Resta saber se o partido -- cuja desarticulação se acentuou com a queda de braço entre os governadores Aécio Neves e José Serra pela candidatura ao Planalto -- conseguirá falar do futuro e do passado com igual clareza e destemor.