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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

No mundo ideal, Direito é imune à política; no real, não
16/02/2010 - Luís Roberto BarrosoLuís Roberto Barroso*

O estudo que se segue está dividido em três partes. Na primeira, narra-se a ascensão institucional do Judiciário nos últimos anos, no Brasil e no mundo. São apresentados, assim, os fenômenos da jurisdição constitucional, da judicialização e do ativismo judicial, bem como as críticas à expansão do Judiciário na vida brasileira. O tópico se encerra com a demonstração da importância e dos limites da jurisdição constitucional nas democracias contemporâneas. A segunda parte é dedicada à concepção tradicional das relações entre Direito e política, fundada na separação plena entre os dois domínios[3]. A Constituição faz a interface entre o universo político e o jurídico, instituindo o Estado de Direito, os poderes constituídos e fazendo a distinção entre legislar, administrar e julgar. A atuação de juízes e tribunais é preservada do contágio político por meio da independência do Judiciário em relação aos demais Poderes e por sua vinculação ao Direito, que constitui um mundo autônomo, tanto do ponto de vista normativo quanto doutrinário. Essa visão, inspirada pelo formalismo jurídico, apresenta inúmeras insuficiências teóricas e enfrenta boa quantidade de objeções, em uma era marcada pela complexidade da interpretação jurídica e por forte interação do Judiciário com outros atores políticos relevantes.

A terceira parte introduz uma questão relativamente nova no debate jurídico brasileiro: o modelo real das relações entre Direito e política. Uma análise sobre o que de fato ocorre no exercício da prestação jurisdicional e na interpretação das normas jurídicas, e não um discurso convencional sobre como elas deveriam ser. Trata-se de uma especulação acerca dos elementos e circunstâncias que motivam e influenciam um juiz, para além da boa aplicação do Direito. Com isso, procura-se superar a persistente negação com que os juristas tradicionalmente lidam com o tema, proclamando uma independência que não é desse mundo. Na construção do argumento, examinam-se algumas hipóteses que produzem os chamados casos difíceis, que exigem a atuação criativa de juízes e tribunais; e faz-se, igualmente, uma reflexão acerca dos diferentes métodos de interpretação e sua utilização em função do resultado a que se quer chegar. Por fim, são identificados diversos fatores extrajurídicos relevantes, capazes de repercutir em maior ou menor medida sobre um julgamento, como os valores pessoais do juiz, as relações do Judiciário com outros atores políticos e a opinião pública, dentre outros.

Entre o ceticismo do realismo jurídico e da teoria crítica, que equiparam o Direito ao voluntarismo e à política, e a visão idealizada do formalismo jurídico, com sua crença na existência de um muro divisório entre ambos, o presente estudo irá demonstrar o que já se afigurava intuitivo: no mundo real, não vigora nem a equiparação nem a separação plena. Na concretização das normas jurídicas, sobretudo as normas constitucionais, Direito e política convivem e se influenciam reciprocamente, numa interação que tem complexidades, sutilezas e variações[4]. Em múltiplas hipóteses, não poderá o intérprete fundar-se em elementos de pura razão e objetividade, como é a ambição do Direito. Nem por isso recairá na discricionariedade e na subjetividade, presentes nas decisões políticas. Entre os dois extremos, existe um espaço em que a vontade é exercida dentro de parâmetros de razoabilidade e de legitimidade, que podem ser controlados pela comunidade jurídica e pela sociedade. Vale dizer: o que se quer é balizado pelo que se pode e pelo que se deve fazer.


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Parte I

A ascensão institucional do Judiciário[5]

II. A jurisdição constitucional

O Estado constitucional de Direito se consolida, na Europa continental, a partir do final da II Guerra Mundial. Até então, vigorava um modelo identificado, por vezes, como Estado legislativo de Direito[6]. Nele, a Constituição era compreendida, essencialmente, como um documento político, cujas normas não eram aplicáveis diretamente, ficando na dependência de desenvolvimento pelo legislador ou pelo administrador. Tampouco existia o controle de constitucionalidade das leis pelo Judiciário — ou, onde existia, era tímido e pouco relevante. Nesse ambiente, vigorava a centralidade da lei e a supremacia do parlamento. No Estado constitucional de Direito, a Constituição passa a valer como norma jurídica. A partir daí, ela não apenas disciplina o modo de produção das leis e atos normativos, como estabelece determinados limites para o seu conteúdo, além de impor deveres de atuação ao Estado. Nesse novo modelo, vigora a centralidade da Constituição e a supremacia judicial, como tal entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte na interpretação final e vinculante das normas constitucionais.

A expressão jurisdição constitucional designa a interpretação e aplicação da Constituição por órgãos judiciais. No caso brasileiro, essa competência é exercida por todos os juízes e tribunais, situando-se o Supremo Tribunal Federal no topo do sistema. A jurisdição constitucional compreende duas atuações particulares. A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempladas. Por exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do Estado, não da União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tributária; ou do direito à liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia. A segunda atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete a utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades (interpretação conforme a Constituição). Em suma: a jurisdição constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do poder público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição.

III. A judicialização da política e das relações sociais [7]

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o Direito no mundo romano-germânico[8]. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas[9], o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês — a chamada democracia ao estilo de Westminster —, com soberania parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade[10]. Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e Justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do Direito. Os precedentes podem ser encontrados em países diversos e distantes entre si, como Canadá[11], Estados Unidos[12], Israel[13], Turquia[14], Hungria[15] e Coreia[16], dentre muitos outros. No início de 2010, uma decisão do Conselho Constitucional francês e outra da Suprema Corte americana produziram controvérsia e a reação política dos dois presidentes[17]. Na América Latina[18], o caso da Colômbia é um dos mais significativos[19].

Há causas de naturezas diversas para o fenômeno. A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, particularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade. Com isso, evitam o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos, como uniões homoafotetivas, interrupção de gestação ou demarcação de terras indígenas[20]. No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da constitucionalização abrangente e analítica — constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis — e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por via de ações diretas.

Como consequência, quase todas as questões de relevância política, social ou moral foram discutidas ou já estão postas em sede judicial, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal. A enunciação que se segue, meramente exemplificativa, serve como boa ilustração dos temas judicializados: (i) instituição de contribuição dos inativos na Reforma da Previdência (ADI 3.105/DF); (ii) criação do Conselho Nacional de Justiça na Reforma do Judiciário (ADI 3.367); (iii) pesquisas com células-tronco embrionárias (ADI 3.510/DF); (iv) liberdade de expressão e racismo (HC 82.424/RS – caso Ellwanger); (v) interrupção da gestação de fetos anencefálicos (ADPF 54/DF); (vi) restrição ao uso de algemas (HC 91.952/SP e Súmula Vinculante 11); (vii) demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR); (viii) legitimidade de ações afirmativas e quotas sociais e raciais (ADI 3.330); (ix) vedação ao nepotismo (ADC 12/DF e Súmula 13); (x) não-recepção da Lei de Imprensa (ADPF 130/DF). A lista poderia prosseguir indefinidamente, com a identificação de casos de grande visibilidade e repercussão, como a extradição do militante italiano Cesare Battisti (Ext 1.085/Itália e MS 27.875/DF), a questão da importação de pneus usados (ADPF 101/DF) ou da proibição do uso do amianto (ADI 3.937/SP). Merece destaque a realização de diversas audiências públicas, perante o STF, para debater a questão da judicialização de prestações de saúde, notadamente o fornecimento de medicamentos e de tratamentos fora das listas e dos protocolos do Sistema Único de Saúde (SUS)[21].

Uma observação final relevante dentro deste tópico. No Brasil, como assinalado, a judicialização decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica adotado; e o sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, que combina a matriz americana — em que todo juiz e tribunal pode pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto — e a matriz europeia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional. Nesse segundo caso, a validade constitucional de leis e atos normativos é discutida em tese, perante o Supremo Tribunal Federal, fora de uma situação concreta de litígio. Essa fórmula foi maximizada no sistema brasileiro pela admissão de uma variedade de ações diretas e pela previsão constitucional de amplo direito de propositura. Nesse contexto, a judicialização constitui um fato inelutável, uma circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm a alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão. Todavia, o modo como venham a exercer essa competência é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial.

IV. O ativismo judicial

Ativismo judicial é uma expressão cunhada nos Estados Unidos[22] e que foi empregada, sobretudo, como rótulo para qualificar a atuação da Suprema Corte durante os anos em que foi presidida por Earl Warren, entre 1954 e 1969[23]. Ao longo desse período, ocorreu uma revolução profunda e silenciosa em relação a inúmeras práticas políticas nos Estados Unidos, conduzida por uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais[24]. Todas essas transformações foram efetivadas sem qualquer ato do Congresso ou decreto presidencial[25]. A partir daí, por força de uma intensa reação conservadora, a expressão ativismo judicial assumiu, nos Estados Unidos, uma conotação negativa, depreciativa, equiparada ao exercício impróprio do poder judicial[26]. Todavia, depurada dessa crítica ideológica — até porque pode ser progressista ou conservadora[27] — a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. Em muitas situações, sequer há confronto, mas mera ocupação de espaços vazios.

No Brasil, há diversos precedentes de postura ativista do STF, manifestada por diferentes linhas de decisão. Dentre elas se incluem: a) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário, como se passou em casos como o da imposição de fidelidade partidária e o da vedação do nepotismo; b) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição, de que são exemplos as decisões referentes à verticalização das coligações partidárias e à cláusula de barreira; c) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, tanto em caso de inércia do legislador — como no precedente sobre greve no serviço público ou sobre criação de município — como no de políticas públicas insuficientes, de que têm sido exemplo as decisões sobre direito à saúde. Todas essas hipóteses distanciam juízes e tribunais de sua função típica de aplicação do Direito vigente e os aproximam de uma função que mais se assemelha à de criação do próprio Direito.

A judicialização, como demonstrado acima, é um fato, uma circunstância do desenho institucional brasileiro. Já o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, ele se instala — e este é o caso do Brasil — em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes[28]. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir mais espaço à atuação dos Poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte deferência em relação às ações e omissões desses últimos.

V. Críticas à expansão da intervenção judicial na vida brasileira

Diversas objeções têm sido opostas, ao longo do tempo, à expansão do Poder Judiciário nos Estados constitucionais contemporâneos. Identificam-se aqui três delas. Tais críticas não infirmam a importância do papel desempenhado por juízes e tribunais nas democracias modernas, mas merecem consideração séria. O modo de investidura dos juízes e membros de tribunais, sua formação específica e o tipo de discurso que utilizam são aspectos que exigem reflexão. Ninguém deseja o Judiciário como instância hegemônica e a interpretação constitucional não pode se transformar em usurpação da função legislativa. Aqui, como em quase tudo mais, impõem-se as virtudes da prudência e da moderação[29].

1. Crítica político-ideológica

Juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. Sua investidura não tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, o Judiciário desempenha um papel que é inequivocamente político. Essa possibilidade de as instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos gera aquilo que em teoria constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritária[30]. A jurisdição constitucional e a atuação expansiva do Judiciário têm recebido, historicamente, críticas de natureza política, que questionam sua legitimidade democrática e sua suposta maior eficiência na proteção dos direitos fundamentais[31]. Ao lado dessas, há, igualmente, críticas de cunho ideológico, que veem no Judiciário uma instância tradicionalmente conservadora das distribuições de poder e de riqueza na sociedade. Nessa perspectiva, a judicialização funcionaria como uma reação das elites tradicionais contra a democratização, um antídoto contra a participação popular e a política majoritária[32].

2. Crítica quanto à capacidade institucional

Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica[33], a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos[34]. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de Direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico[35]. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça[36], sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público[37].

3. Crítica quanto à limitação do debate

O mundo do Direito tem categorias, discurso e métodos próprios de argumentação. O domínio desse instrumental exige conhecimento técnico e treinamento específico, não acessíveis à generalidade das pessoas. A primeira consequência drástica da judicialização é a elitização do debate e a exclusão dos que não dominam a linguagem nem têm acesso aos locus de discussão jurídica[38]. Institutos como audiências públicas, amicus curiae e direito de propositura de ações diretas por entidades da sociedade civil atenuam, mas não eliminam esse problema. Surge, assim, o perigo de se produzir uma apatia nas forças sociais, que passariam a ficar à espera de juízes providenciais[39]. Na outra face da moeda, a transferência do debate público para o Judiciário traz uma dose excessiva de politização dos tribunais, dando lugar a paixões em um ambiente que deve ser presidido pela razão[40]. No movimento seguinte, processos passam a tramitar nas manchetes de jornais — e não na imprensa oficial — e juízes trocam a racionalidade plácida da argumentação jurídica por embates próprios da discussão parlamentar, movida por visões políticas contrapostas e concorrentes[41].

VI. Importância e limites da jurisdição constitucional nas democracias contemporâneas

A jurisdição constitucional pode não ser um componente indispensável do constitucionalismo democrático, mas tem servido bem à causa, de uma maneira geral[42]. Ela é um espaço de legitimação discursiva ou argumentativa das decisões políticas, que coexiste com a legitimação majoritária, servindo-lhe de “contraponto e complemento”[43]. Isso se torna especialmente verdadeiro em países de redemocratização mais recente, como o Brasil, onde o amadurecimento institucional ainda se encontra em curso, enfrentando uma tradição de hegemonia do Executivo e uma persistente fragilidade do sistema representativo[44]. As constituições contemporâneas, como já se assinalou, desempenham dois grandes papéis: (i) o de condensar os valores políticos nucleares da sociedade, os consensos mínimos quanto a suas instituições e quanto aos direitos fundamentais nela consagrados; e (ii) o de disciplinar o processo político democrático, propiciando o governo da maioria, a participação da minoria e a alternância no poder[45]. Pois este é o grande papel de um tribunal constitucional, do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro: proteger e promover os direitos fundamentais, bem como resguardar as regras do jogo democrático. Eventual atuação contramajoritária do Judiciário em defesa dos elementos essenciais da Constituição se dará a favor e não contra a democracia[46].

Nas demais situações — isto é, quando não estejam em jogo os direitos fundamentais ou os procedimentos democráticos —, juízes e tribunais devem acatar as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor-lhes sua própria valoração política[47]. Isso deve ser feito não só por razões ligadas à legitimidade democrática, como também em atenção às capacidades institucionais dos órgãos judiciários e sua impossibilidade de prever e administrar os efeitos sistêmicos das decisões proferidas em casos individuais. Os membros do Judiciário não devem presumir demais de si próprios — como ninguém deve, aliás, nessa vida —, supondo-se experts em todas as matérias. Por fim, o fato de a última palavra acerca da interpretação da Constituição ser do Judiciário não o transforma no único — nem no principal — foro de debate e de reconhecimento da vontade constitucional a cada tempo. A jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social, os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes.

Parte II

Direito e política: a concepção tradicional

I. Notas sobre a distinção entre Direito e política

A separação entre Direito e política tem sido considerada como essencial no Estado constitucional democrático. Na política, vigoram a soberania popular e o princípio majoritário. O domínio da vontade. No Direito, vigora o primado da lei (the rule of law) e do respeito aos direitos fundamentais. O domínio da razão. A crença mitológica nessa distinção tem resistido ao tempo e às evidências. Ainda hoje, já avançado o século XXI, mantém-se a divisão tradicional entre o espaço da política e o espaço do Direito[48]. No plano de sua criação, não há como o Direito ser separado da política, na medida em que é produto do processo constituinte ou do processo legislativo, isto é, da vontade das maiorias. O Direito é, na verdade, um dos principais produtos da política, o troféu pelo qual muitas batalhas são disputadas[49]. Em um Estado de Direito, a Constituição e as leis, a um só tempo, legitimam e limitam o poder político.

Já no plano da aplicação do Direito, sua separação da política é tida como possível e desejável. Tal pretensão se realiza, sobretudo, por mecanismos destinados a evitar a ingerência do poder político sobre a atuação judicial. Isso inclui limitações ao próprio legislador, que não pode editar leis retroativas, destinadas a atingir situações concretas[50]. Essa separação é potencializada por uma visão tradicional e formalista do fenômeno jurídico. Nela se cultivam crenças como a da neutralidade científica, da completude do Direito e a da interpretação judicial como um processo puramente mecânico de concretização das normas jurídicas, em valorações estritamente técnicas[51]. Tal perspectiva esteve sob fogo cerrado ao longo de boa parte do século passado, tendo sido criticada por tratar questões políticas como se fossem linguísticas e por ocultar escolhas entre diferentes possibilidades interpretativas por trás do discurso da única solução possível[52]. Mais recentemente, autores diversos têm procurado resgatar o formalismo jurídico, em uma versão requalificada, cuja ênfase é a valorização das regras e a contenção da discricionariedade judicial[53].

II. Constituição e poderes constituídos

A Constituição é o primeiro e principal elemento na interface entre política e Direito. Cabe a ela transformar o poder constituinte originário — energia política em estado quase puro, emanada da soberania popular — em poder constituído, que são as instituições do Estado, sujeitas à legalidade jurídica, à rule of law. É a Constituição que institui os Poderes do Estado, distribuindo-lhes competências diversas[54]. Dois deles recebem atribuições essencialmente políticas: o Legislativo e o Executivo. Ao Legislativo toca, precipuamente, a criação do Direito positivo[55]. Já o Executivo, no sistema presidencialista brasileiro, concentra as funções de chefe de Estado e de chefe de governo, conduzindo com razoável proeminência a política interna e externa. Legislativo e Executivo são o espaço por excelência do processo político majoritário, feito de campanhas eleitorais, debate público e escolhas discricionárias. Um universo no qual o título principal de acesso é o voto: o que elege, reelege ou deixa de fora.

Já ao Poder Judiciário são reservadas atribuições tidas como fundamentalmente técnicas. Ao contrário do chefe do Executivo e dos parlamentares, seus membros não são eleitos. Como regra geral, juízes ingressam na carreira no primeiro grau de jurisdição, mediante concurso público. O acesso aos tribunais de segundo grau se dá por via de promoção, conduzida pelo órgão de cúpula do próprio tribunal[56]. No tocante aos tribunais superiores, a investidura de seus membros sofre maior influência política, mas, ainda assim, está sujeita a parâmetros constitucionais[57]. A atribuição típica do Poder Judiciário consiste na aplicação do Direito a situações em que tenha surgido uma disputa, um litígio entre partes. Ao decidir a controvérsia — esse o entendimento tradicional —, o juiz faz prevalecer, no caso concreto, a solução abstratamente prevista na lei. Desempenharia, assim, uma função técnica de conhecimento, de mera declaração de um resultado já previsto, e não uma atividade criativa, suscetível de influência política[58]. Mesmo nos casos de controle de constitucionalidade em tese — isto é, de discussão acerca da validade abstrata de uma lei —, o Judiciário estaria fazendo prevalecer a vontade superior da Constituição sobre a decisão política majoritária do Legislativo.

IV. A pretensão de autonomia do Judiciário e do Direito em relação à política

A maior parte dos Estados democráticos do mundo reserva uma parcela de poder político para ser exercido pelo Judiciário, isto é, por agentes públicos que não são eleitos. Quando os órgãos judiciais resolvem disputas entre particulares, determinando, por exemplo, o pagamento de uma indenização por quem causou um acidente, decretando um divórcio ou o despejo de um imóvel, não há muita polêmica sobre a legitimidade do poder que exerce. A Constituição confere a ele competência para solucionar os litígios em geral e é disso que se trata. A questão ganha em complexidade, todavia, quando o Judiciário atua em disputas que envolvem a validade de atos estatais ou nas quais o Estado – isto é, outros órgãos de Poder – seja parte. É o que ocorre quando declara inconstitucional a cobrança de um tributo, suspende a execução de uma obra pública por questões ambientais ou determina a um hospital público que realize tratamento experimental em paciente que solicitou tal providência em juízo. Nesses casos, juízes e tribunais sobrepõem sua vontade à de agentes públicos de outros Poderes, eleitos ou nomeados para o fim específico de fazerem leis, construírem estradas ou definirem as políticas de saúde.

Para blindar a atuação judicial da influência imprópria da política, a cultura jurídica tradicional sempre se utilizou de dois grandes instrumentos: a independência do Judiciário em relação aos órgãos propriamente políticos de governo; e a vinculação ao Direito, pela qual juízes e tribunais têm sua atuação determinada pela Constituição e pelas leis. Órgãos judiciais, ensina o conhecimento convencional, não exercem vontade própria, mas concretizam a vontade política majoritária manifestada pelo constituinte ou pelo legislador. A atividade de interpretar e aplicar normas jurídicas é regida por um conjunto de princípios, regras, convenções, conceitos e práticas que dão especificidade à ciência do Direito ou dogmática jurídica. Este, portanto, o discurso padrão: juízes são independentes da política e limitam-se a aplicar o Direito vigente, de acordo com critérios aceitos pela comunidade jurídica.

1. Independência do Judiciário

A independência do Judiciário é um dos dogmas das democracias contemporâneas. Em todos os países que emergiram de regimes autoritários, um dos tópicos essenciais do receituário para a reconstrução do Estado de Direito é a organização de um Judiciário que esteja protegido de pressões políticas e que possa interpretar e aplicar a lei com isenção, baseado em técnicas e princípios aceitos pela comunidade jurídica. Independência e imparcialidade como condições para um governo de leis, e não de homens. De leis, e não de juízes, fique bem entendido[59]. Para assegurar que assim seja, a Constituição brasileira, por exemplo, confere à magistratura garantias institucionais — que incluem autonomia administrativa e financeira — e funcionais, como a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de remuneração[60]. Naturalmente, para resguardar a harmonia com outros Poderes, o Judiciário está sujeito a checks and balances­ e, desde a Emenda Constitucional 45, de 2004, ao controle administrativo, financeiro e disciplinar do Conselho Nacional de Justiça. Em uma democracia, todo poder é representativo, o que significa que deve ser transparente e prestar contas à sociedade. Nenhum poder pode estar fora do controle social, sob pena de se tornar um fim em si mesmo, prestando-se ao abuso e a distorções diversas[61].

2. Vinculação ao Direito posto e à dogmática jurídica

O mundo do Direito tem suas fronteiras demarcadas pela Constituição e seus caminhos determinados pelas leis. Além disso, tem valores, categorias e procedimentos próprios, que pautam e limitam a atuação dos agentes jurídicos, sejam juízes, advogados ou membros do Ministério Público. Pois bem: juízes não inventam o Direito do nada. Seu papel é o de aplicar normas que foram positivadas pelo constituinte ou pelo legislador. Ainda quando desempenhem uma função criativa do Direito para o caso concreto, deverão fazê-lo à luz dos valores compartilhados pela comunidade a cada tempo. Seu trabalho, portanto, não inclui escolhas livres, arbitrárias ou caprichosas. Seus limites são a vontade majoritária e os valores compartilhados. Na imagem recorrente, juízes de Direito são como árbitros desportivos: cabe-lhes valorar fatos, assinalar faltas, validar gols ou pontos, marcar o tempo regulamentar, enfim, assegurar que todos cumpram as regras e que o jogo seja justo. Mas não lhes cabe formular as regras[62]. A metáfora já teve mais prestígio, mas é possível aceitar, para não antecipar a discussão do próximo tópico, que ela seja válida para qualificar a rotina da atividade judicial, embora não as grandes questões constitucionais.

Não está em questão, portanto, que as escolhas políticas devem ser feitas, como regra geral, pelos órgãos eleitos, isto é, pelo Congresso e pelo presidente. Os tribunais desempenham um papel importante na vida democrática, mas não o papel principal. Dois autores contemporâneos utilizaram expressões que se tornaram emblemáticas para demarcar o papel das cortes constitucionais. Ronald Dworkin referiu-se a “fórum de princípios”. Em uma sociedade democrática, algumas questões decisivas devem ser tratadas como questões de princípios — morais ou políticos — e não como uma questão de poder político, de vontade majoritária. São elas as que envolvem direitos fundamentais das pessoas, e não escolhas gerais sobre como promover o bem-estar social[63]. Já John Rawls explorou a idéia de “razão pública”. Em uma democracia pluralista, a razão pública consiste na justificação das decisões políticas sobre questões constitucionais essenciais e sobre questões de justiça básica, como os direitos fundamentais. Ela expressa os argumentos que pessoas com formação política e moral diversa podem acatar, o que exclui, portanto, o emprego de doutrinas abrangentes, como as de caráter religioso ou ideológico[64]. Em suma: questões de princípio devem ser decididas, em última instância, por cortes constitucionais, bom base em argumentos de razão pública.

3. Limites da separação entre Direito e política

Direito é, certamente, diferente da política. Mas não é possível ignorar que a linha divisória entre ambos, que existe inquestionavelmente, nem sempre é nítida, e certamente não é fixa[65]. Do ponto de vista da teoria jurídica, tem escassa adesão, nos dias que correm, a crença de que as normas jurídicas tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao intérprete uma atividade de mera revelação do conteúdo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização. Há praticamente consenso, na doutrina contemporânea, de que a interpretação e aplicação do Direito envolvem elementos cognitivos e volitivos. Do ponto de vista funcional, é bem de ver que esse papel de intérprete final e definitivo, em caso de controvérsia, é desempenhado por juízes e tribunais. De modo que o Poder Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal, desfruta de uma posição de primazia na determinação do sentido e do alcance da Constituição e das leis, pois cabe-lhe dar a palavra final, que vinculará os demais Poderes. Essa supremacia judicial quanto à determinação do que é o Direito envolve, por evidente, o exercício de um poder político, com todas as suas implicações para a legitimidade democrática[66].

Parte III

Direito e política: o modelo real

I. Os laços inevitáveis: a lei e sua interpretação como atos de vontade

No mundo romano-germânico, é comum fazer-se referência ao Direito como uma ciência. A afirmação pode ser aceita, ainda que com reserva, se o termo ciência for tomado no sentido de um conjunto organizado de conhecimentos, que guarda uma lógica interna e tem princípios, conceitos e categorias específicos, unificados em uma terminologia própria. Mas é intuitiva a distinção a ser feita em relação às ciências da natureza. Essas últimas são domínios que lidam com fenômenos que se ordenam independentemente da vontade humana, seja o legislador, o público em geral ou o intérprete. São ciências que se destinam a explicar o que lá já está. Sem pretender subestimar complexidades epistemológicas, são domínios em que o anseio científico por objetividade e comprovação imparcial se realiza mais intensamente. Já o Direito se insere no campo das ciências sociais e tem, sobretudo, uma pretensão prescritiva: ele procura moldar a vida de acordo com suas normas. E normas jurídicas não são reveladas, mas, sim, criadas por decisões e escolhas políticas, tendo em vista determinadas circunstâncias e visando determinados fins. E, por terem caráter prospectivo, precisarão ser interpretadas no futuro, tendo em conta fatos e casos concretos.

Como consequência, tanto a criação quanto a aplicação do Direito dependem da atuação de um sujeito, seja o legislador ou o intérprete. A legislação, como ato de vontade humana, expressará os interesses dominantes — ou, se se preferir, o interesse público, tal como compreendido pela maioria, em um dado momento e lugar. E a jurisdição, que é a interpretação final do Direito aplicável, expressará, em maior ou menor intensidade, a compreensão particular do juiz ou do tribunal acerca do sentido das normas. Diante de tais premissas, é possível extrair uma conclusão parcial bastante óbvia, ainda que frequentemente encoberta: o mantra repetido pela comunidade jurídica mais tradicional de que o Direito é diverso da política exige um complemento. É distinto, sim, e por certo; mas não é isolado dela. Suas órbitas se cruzam e, nos momentos mais dramáticos, se chocam, produzindo vítimas de um ou dos dois lados: a justiça e a segurança jurídica, que movem o Direito; ou a soberania popular e a legitimidade democrática, que devem conduzir a política. A seguir se exploram diferentes aspectos dessa relação. Alguns deles são ligados à teoria do Direito e da interpretação, e outros às circunstâncias dos juízes e órgãos julgadores.

II. A interpretação jurídica e suas complexidades: o encontro não marcado entre o Direito e a política

1. A linguagem aberta dos textos jurídicos

A linguagem jurídica, como a linguagem em geral, utiliza-se de signos que precisam ser interpretados. Tais signos, muitas vezes, possuem determinados sentidos consensuais ou de baixo grau de controvérsia. Embora nem sempre as coisas sejam simples como parecem, há pouca dúvida do que signifique município, orçamento ou previdência complementar. Mas a Constituição se utiliza, igualmente, de inúmeras cláusulas abertas, que incluem conceitos jurídicos indeterminados e princípios. Calamidade pública, relevância e urgência ou crime político são conceitos que transmitem uma ideia inicial de sentido, mas que precisam ser integrados à luz dos elementos do caso concreto. E, em relação a eles, embora possam existir certezas positivas e negativas sobre o que significam ou deixam de significar, é indiscutível que há uma ampla área de penumbra que se presta a valorações que não poderão refugir a algum grau de subjetividade. O fenômeno se repete com maior intensidade quando se trate de princípios constitucionais, com sua intensa carga axiológica, como dignidade da pessoa humana, moralidade administrativa ou solidariedade social. Também aqui será impossível falar em sentidos claros e unívocos. Na interpretação de normas cuja linguagem é aberta e elástica, o Direito perde muito da sua objetividade e abre espaço para valorações do intérprete. O fato de existir consenso de que ao atribuir sentido a conceitos indeterminados e a princípios não deve o juiz utilizar-se dos seus próprios valores morais e políticos não elimina riscos e complexidades, funcionando como uma bússola de papel.

2. Os desacordos morais razoáveis

Além dos problemas de ambiguidade da linguagem, que envolvem a determinação semântica de sentido da norma, existem, também, em uma sociedade pluralista e diversificada, o que se tem denominado de desacordo moral razoável[67]. Pessoas bem intencionadas e esclarecidas, em relação a múltiplas matérias, pensam de maneira radicalmente contrária, sem conciliação possível. Cláusulas constitucionais como Direito à vida, dignidade da pessoa humana ou igualdade dão margem a construções hermenêuticas distintas, por vezes contrapostas, de acordo com a pré-compreensão do intérprete. Esse fenômeno se revela em questões que são controvertidas em todo o mundo, inclusive no Brasil, como, por exemplo, interrupção de gestação, pesquisas com células-tronco embrionárias, eutanásia/ortotanásia, uniões homoafetivas, em meio a inúmeras outras. Nessas matérias, como regra geral, o papel do Direito e do Estado deve ser o de assegurar que cada pessoa possa viver sua autonomia da vontade e suas crenças. Ainda assim, inúmeras complexidades surgem, motivadas por visões filosóficas e religiosas diversas.

3. As colisões de normas constitucionais

Constituições são documentos dialéticos e compromissórios, que consagram valores e interesses diversos, que eventualmente entram em rota de colisão. Essas colisões podem se dar, em primeiro lugar, entre princípios ou interesses constitucionalmente protegidos. É o caso, por exemplo, da tensão entre desenvolvimento nacional e proteção do meio-ambiente ou entre livre-iniciativa e repressão ao abuso do poder econômico. Também é possível a colisão entre direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e o direito de privacidade, ou entre a liberdade de reunião e o direito de ir e vir (no caso, imagine-se, de uma passeata que bloqueie integralmente uma via de trânsito essencial). Por fim, é possível cogitar de colisão de direitos fundamentais com certos princípios ou interesses constitucionalmente protegidos, como o caso da liberdade individual, de um lado, e a segurança pública e a persecução penal, de outro. Em todos esses exemplos, à vista do princípio da unidade da Constituição, o intérprete não pode escolher arbitrariamente um dos lados, já que não há hierarquia entre normas constitucionais. De modo que ele precisará demonstrar, argumentativamente, à luz dos elementos do caso concreto, mediante ponderação e uso da proporcionalidade, que determinada solução realiza mais adequadamente a vontade da Constituição, naquela situação específica.

Todas essas hipóteses referidas acima — ambiguidade da linguagem, desacordo moral e colisões de normas — recaem em uma categoria geral que tem sido referida como casos difíceis (hard cases)[68]. Nos casos fáceis, a identificação do efeito jurídico decorrente da incidência da norma sobre os fatos relevantes envolve uma operação simples, de mera subsunção. O proprietário de um imóvel urbano deve pagar imposto predial. A Constituição não permite ao Chefe do Executivo um terceiro mandato. Já os casos difíceis envolvem situações para as quais não existe uma solução acabada no ordenamento jurídico. Ela precisa ser construída argumentativamente, por não resultar do mero enquadramento do fato à norma. Pode um artista, em nome do direito de privacidade, impedir a divulgação de sua biografia, escrita por um pesquisador? Pode o autor de uma ação de investigação de paternidade exigir que o indigitado pai se submeta coativamente a exame de DNA? Em ambos os casos, que envolvem questões constitucionais — privacidade, liberdade de expressão, direitos da personalidade, liberdade individual — a solução para a disputa não é encontrável pré-pronta no sistema jurídico: ela precisa ser desenvolvida justificadamente pelo intérprete.

4. A interpretação constitucional e seus métodos

Em todas as hipóteses referidas acima, envolvendo casos difíceis, o sentido da norma precisará ser fixado pelo juiz. Como se registrou, são situações em que a solução não estará pronta em uma prateleira jurídica e, portanto, exigirá uma atuação criativa do intérprete, que deverá argumentativamente justificar seu itinerário lógico e suas escolhas. Se a solução não está integralmente na norma, o juiz terá de recorrer a elementos externos ao Direito posto, em busca do justo, do bem, do legítimo. Ou seja, sua atuação terá de se valer da filosofia moral e da filosofia política. Mesmo admitida esta premissa — a de que o juiz, ao menos em certos casos, precisa recorrer a elementos extrajurídicos —, ainda assim se vai verificar que diferentes juízes adotam diferentes métodos de interpretação. Há juízes que pretendem extrair da Constituição suas melhores potencialidades, realizando na maior extensão possível os princípios e direitos fundamentais. Há outros que entendem mais adequado não ler na Constituição o que nela não está de modo claro ou expresso, prestando maior deferência ao legislador ordinário[69]. Uma pesquisa empírica revelará, sem surpresa, que os mesmos juízes nem sempre adotam os mesmos métodos de interpretação[70]. Seu método ou filosofia judicial é mera racionalização da decisão que tomou por outras razões[71]. E aí surge uma nova variável: o resultado baseado não no princípio, mas no fim, no resultado[72].

Nesse ponto, impossível não registrar a tentação de se abrir espaço para o debate acerca de uma das principais correntes filosóficas do Direito contemporâneo: o pragmatismo jurídico, com seu elemento constitutivo essencial, que é o consequencialismo. Para essa concepção, as consequências e resultados práticos das decisões judiciais, assim em relação ao caso concreto como ao sistema como um todo, devem ser o fator decisivo na atuação dos juízes e tribunais[73]. O pragmatismo jurídico afasta-se do debate filosófico em geral, seja moral ou político — inclusive o que mobilizou jusnaturalistas e positivistas em torno da resposta à pergunta “o que é o Direito?” — e se alinha a um empreendimento teórico distinto, cuja indagação central é: “como os juízes devem decidir?”[74]. Não é o caso, aqui, de se objetar que uma coisa não exclui a outra. A realidade incontornável, na circunstância presente, é que o desvio que conduz ao debate sobre o pragmatismo jurídico não poderá ser feito no âmbito desse trabalho. E isso não apenas por afastá-lo do seu eixo central, como também pela complexidade da tarefa de qualificar o que seja pragmatismo jurídico e de sistematizar as diferentes correntes que reivindicam o rótulo.

III. O juiz e suas circunstâncias: influências políticas em um julgamento[75]

No modelo idealizado, o Direito é imune às influências da política, por força de diferentes institutos e mecanismos. Basicamente, eles consistiriam: na independência do Judiciário e na vinculação do juiz ao sistema jurídico. A independência se manifesta, como assinalado, em garantias institucionais — como a autonomia administrativa e financeira — e garantias funcionais dos juízes, como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de subsídios. Como regra geral, a investidura e a ascensão na carreira da magistratura se dá por critérios técnicos ou por valorações interna corporis. Nos casos em que há participação política na nomeação de magistrados para tribunais, ela se esgota após a posse, pois a permanência vitalícia do magistrado no cargo já não dependerá de qualquer novo juízo político. A autonomia e especificidade do universo jurídico, por sua vez, consistem em um conjunto de doutrinas, categorias e princípios próprios, manejados por juristas em geral — aí incluídos juízes, advogados, membros do Ministério Público e demais participantes do processo jurídico e judicial — que não se confundem com os da política. Trata-se de um discurso e de um código de relação diferenciados. Julgar é distinto de legislar e de administrar. Juízes não criam o Direito nem definem as ações administrativas. Seu papel é aplicar a Constituição e as leis, valendo-se de um conjunto de institutos consolidados de longa data, sendo que a jurisprudência desempenha, crescentemente, um papel limitador dessa atuação, pela vinculação aos precedentes. Direito e política, nessa visão, constituem mundos apartados.

Há um modelo oposto a esse, que se poderia denominar de modelo cético, que descrê da autonomia do Direito em relação à política e aos fenômenos sociais em geral. Esse é o ponto de vista professado por movimentos teóricos de expressão, como o realismo jurídico, a teoria crítica e boa parte das ciências sociais contemporâneas. Todos eles procuram descrever o mundo jurídico e as decisões judiciais como são, e não como deveriam ser. Afirmam, assim, que a crença na objetividade do Direito e a existência de soluções prontas no ordenamento jurídico não passam de mitos. Não é verdade que o Direito seja um sistema de regras e de princípios harmônicos, de onde um juiz imparcial e apolítico colhe as soluções adequadas para os problemas, livre de influências externas. Essa é uma fantasia do formalismo jurídico. Decisões judiciais refletem as preferências pessoais dos juízes, proclama o realismo jurídico; são essencialmente políticas, verbera a teoria crítica; são influenciadas por inúmeros fatores extrajurídicos, registram os cientistas sociais. Todo caso difícil pode ter mais de uma solução razoável construída pelo intérprete, e a solução que ele produzirá será, em última análise, aquela que melhor atenda a suas preferências pessoais, sua ideologia ou outros fatores externos, como os de natureza institucional. Ele sempre agirá assim, tenha ou não consciência do que está fazendo.

O modelo real, como não é difícil de intuir, terá uma dose razoável de cada uma das visões extremas descritas acima. O Direito pode e deve ter uma vigorosa pretensão de autonomia em relação à política. Isso é essencial para a subsistência do conceito de Estado de Direito e para a confiança da sociedade nas instituições judiciais. A realidade, contudo, revela que essa autonomia será sempre relativa. Existem razões institucionais, funcionais e humanas para que seja assim. Decisões judiciais, com frequência, refletirão fatores extrajurídicos. Dentre eles incluem-se os valores pessoais e ideológicos do juiz, assim como outros elementos de natureza política e institucional. Por longo tempo, a teoria do Direito procurou negar esse fato, a despeito das muitas evidências. Pois bem: a energia despendida na construção de um muro de separação entre o Direito e a política deve voltar-se agora para outra empreitada[76]. Cuida-se de entender melhor os mecanismos dessa relação intensa e inevitável, com o propósito relevante de preservar, no que é essencial, a especificidade e, sobretudo, a integridade do Direito[77]. Pois é justamente este o objetivo do presente tópico: analisar alguns desses elementos metajurídicos que influenciam ou podem influenciar as decisões judiciais. Confira-se a sistematização a seguir.

1. Valores e ideologia do juiz

Como assinalado, o realismo jurídico, um dos mais importantes movimentos teóricos do Direito no século XX, contribuiu decisivamente para a superação do formalismo jurídico e da crença de que a atividade judicial seria mecânica, acrítica e unívoca. Enfatizando que o Direito tem ambiguidades e contradições, o realismo sustentava que a lei não é o único – e, em muitos casos, sequer o mais importante – fator a influenciar uma decisão judicial. Em uma multiplicidade de hipóteses, é o juiz que faz a escolha do resultado, à luz de suas intuições, personalidade, preferências e preconceitos[78]. Em linha análoga, mas dando proeminência absoluta ao elemento político, a teoria crítica[79], no mundo romano-germânico, e os critical legal studies, nos Estados Unidos, sustentaram que decisões judiciais não passam de escolhas políticas, encobertas por um discurso que procura exibir neutralidade[80]. Tanto o realismo quanto a teoria crítica refluíram drasticamente nas últimas décadas, mas deixaram uma marca indelével no pensamento jurídico contemporâneo[81]. Mais recentemente, um conjunto de estudos empíricos, oriundos, sobretudo, da ciência política, recolocaram no centro do debate jurídico o tema dos valores, preferências e ideologia do juiz na determinação do resultado de casos judiciais[82].

Há, de fato, quem sustente ser mais fácil saber um voto ou uma decisão pelo nome do juiz do que pela tese jurídica aplicável[83]. Essa visão cética acarreta duas consequências negativas: deslegitima a função judicial e libera os juízes para fazerem o que quiserem[84]. Há uma razão subjetiva e outra objetiva que se pode opor a esse ponto de vista. A primeira: é possível assumir, como regra geral, que juízes verdadeiramente vocacionados têm como motivação primária e principal a interpretação adequada do Direito vigente, com a valoração imparcial dos elementos fáticos e jurídicos relevantes[85]. Não se deve minimizar esse sentido de dever que move as pessoas de bem em uma sociedade civilizada. Em segundo lugar, o Direito – a Constituição, as leis, a jurisprudência, os elementos e métodos de interpretação – sempre desempenhará uma função limitadora. O discurso normativo e a dogmática jurídica são autônomos em relação às preferências pessoais do julgador. Por exemplo: o desejo de punir uma determinada conduta não é capaz de superar a ocorrência de prescrição. O ímpeto de conhecer e julgar uma causa não muda a regra sobre legitimação ativa ou sobre prejudicialidade[86]. De modo que o sentimento pessoal de cumprir o próprio dever e a força vinculante do Direito são elementos decisivos na atuação judicial. Mas há que se reconhecer que não são únicos.

Com efeito, a observação atenta, a prática política e pesquisas empíricas confirmam o que sempre foi possível intuir: os valores pessoais e a ideologia dos juízes influenciam, em certos casos de maneira decisiva, o resultado dos julgamentos. Por exemplo: na apreciação da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, a posição contrária à lei que as autorizava foi liderada por Ministro ligado historicamente ao pensamento e à militância católica[87], sendo certo que a Igreja se opõe às investigações científicas dessa natureza[88]. Nos Estados Unidos, fez parte da estratégia conservadora, iniciada com a posse de Ronald Reagan, em 1981, nomear para a Suprema Corte Ministros que pudessem reverter decisões judiciais consideradas progressistas, em temas como ações afirmativas, aborto e direitos dos acusados em processos criminais[89]. Inúmeras pesquisas, no Brasil[90] e nos Estados Unidos[91], confirmam que as preferências políticas dos juízes constituem uma das variáveis mais relevantes para as decisões judiciais, notadamente nos casos difíceis. É de se registrar que o processo psicológico que conduz a uma decisão pode ser consciente ou inconsciente[92].

Note-se que no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, o carimbo político é menos relevante ou, no mínimo, menos visível, na medida em que a maior parte dos cargos no Judiciário são preenchidos mediante concurso público e promoções internas[93]. Mas não é este o caso das nomeações para o Supremo Tribunal Federal, em que os parâmetros constitucionais são vagos – reputação ilibada e notável saber jurídico – e a escolha pessoal do Presidente é o fator mais importante, sem embargo da aprovação pelo Senado Federal. Na literatura norte-americana, tem sido destacada a importância do gênero e da raça na determinação de certos padrões decisórios do juiz. No caso brasileiro, em tribunais superiores, em geral, e no STF, em particular, a origem profissional do Ministro imprime características perceptíveis na sua atuação judicial: Ministros que vêm da Magistratura, do Ministério Público, da advocacia privada, da advocacia pública ou da academia tendem a refletir, no exercício da jurisdição, a influência de experiências pretéritas[94]. Note-se, todavia, em desfecho do tópico, que eventuais preferências políticas do juiz são contidas não apenas por sua subordinação aos sentidos mínimos das normas constitucionais e legais, como também por fatores extrajudiciais, dentre os quais se podem destacar: a interação com outros atores políticos e institucionais, a perspectiva de cumprimento efetivo da decisão, as circunstâncias internas dos órgãos colegiados e a opinião pública.

2. Interação com outros atores políticos e institucionais

Como se vem enfatizando até aqui, decisões judiciais são influenciadas por fatores múltiplos. Tribunais não são guardiães de um direito que não sofre o influxo da realidade, das maiorias políticas e dos múltiplos atores de uma sociedade plural. Órgãos, entidades e pessoas que se mobilizam, atuam e reagem. Dentre eles é possível mencionar, exemplificativamente, os Poderes Legislativo e Executivo, o Ministério Público, os Estados da Federação e entidades da sociedade civil. Todos eles se manifestam, nos autos ou fora deles, procurando fazer valer seus direitos, interesses e preferências. Atuam por meios formais e informais. E o Supremo Tribunal Federal, como a generalidade das cortes constitucionais, não vive fora do contexto político-institucional sobre o qual sua atuação repercute. Diante disso, o papel e as motivações da Corte sofrem a influência de fatores como, por exemplo: a preservação e, por vezes, a expansão de seu próprio poder; a interação com outros Poderes, instituições ou entes estatais; e as consequências práticas de seus julgados, inclusive e notadamente, a perspectiva de seu efetivo cumprimento.

2.1. Preservação ou expansão do poder da Corte

O primeiro impulso natural do poder é a auto-conservação. É intuitivo, assim, que um tribunal, em suas relações com os outros atores políticos, institucionais ou sociais, procure demarcar e preservar seu espaço de atuação e sua autoridade, quer pelo acolhimento de reclamações[95], quer pela reafirmação de sua jurisprudência. Alguns exemplos comprovam o argumento. Após haver cancelado a Súmula nº 394, excluindo do foro privilegiado os agentes públicos que deixassem o exercício da função[96], o STF invalidou lei editada pelo Congresso Nacional que restabelecia a orientação anterior. O acórdão considerou haver usurpação de sua função de intérprete final da Constituição[97]. Em outro caso, o STF considerou inconstitucional dispositivo legal que impedia a progressão de regime em caso de crime hediondo[98]. Decisão do juiz de Direito de Rio Branco, no Acre, deixou de aplicar a nova orientação, sob o argumento de que a declaração de inconstitucionalidade fora incidental e não produzia efeitos vinculantes. A Corte reagiu, e não apenas desautorizou o pronunciamento específico do magistrado estadual, como deu início a uma discussão de mais largo alcance sobre a atribuição de efeitos vinculantes e erga omnes à sua decisão de inconstitucionalidade, mesmo que no controle incidental, retirando do Senado a atribuição de suspender a lei considerada inválida[99]. Um terceiro e último exemplo: após haver concedido habeas corpus a um banqueiro, preso temporariamente ao final de uma polêmica operação policial, o STF considerou afronta à Corte a decretação, horas depois, de nova prisão, dessa vez de natureza preventiva, ordenada pelo mesmo juiz, e concedeu um segundo habeas corpus[100].

O segundo impulso natural do poder é a expansão[101]. No caso brasileiro, esse movimento de ampliação do Poder Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal, tem sido contemporâneo da retração do Legislativo, que passa por uma crise de funcionalidade e de representatividade. Nesse vácuo de poder, fruto da dificuldade de o Congresso Nacional formar maiorias consistentes e legislar, a corte suprema tem produzido decisões que podem ser reputadas ativistas, tal como identificado o fenômeno em tópico anterior[102]. Exemplos emblemáticos e sempre lembrados são os dos julgamentos da fidelidade partidária – em que o STF criou, por interpretação do princípio democrático, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar[103] – e do nepotismo, em que a Corte, com base na interpretação dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, estabeleceu a vedação do nepotismo nos três Poderes[104]. Ações como as que tratam da legitimidade da interrupção da gestação em caso de feto anencefálico[105] e da extensão do regime da união estável às uniões homoafetivas[106] também envolvem uma atuação quase normativa do Supremo Tribunal Federal. Tudo sem mencionar a mudança jurisprudencial em tema de mandado de injunção[107] e o progressivo questionamento que se vem fazendo, no âmbito da própria Corte, acerca da jurisprudência tradicional de que o STF somente possa funcionar como legislador negativo[108].

Em 2009, o STF solucionou uma disputa constitucional – e de espaço político – entre a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em favor da expansão do poder desse último. De fato, acórdão da 2ª. Turma do STF, por diferença de um voto, legitimou decisão do STJ de devolver lista sêxtupla enviada pela OAB, sem motivação objetiva, sob o fundamento de que nenhum dos nomes obteve quorum para figurar na lista tríplice a ser encaminhada ao Presidente da República[109]. A decisão, de certa forma, está em desacordo com precedente do próprio STF[110] e esvazia a competência do órgão de representação dos advogados, cuja lista, doravante, estará sujeita a ingerência do STJ. A matéria não chegou ao Plenário do STF, onde o resultado, possivelmente, teria sido diverso.

2.2. Relações com outros Poderes, órgãos e entidades estatais

As manifestações processuais e extraprocessuais de outros Poderes, órgãos e entidades estatais são elementos relevantes do contexto institucional em que produzidas as decisões judiciais, especialmente do Supremo Tribunal Federal. Em tema de ações diretas de inconstitucionalidade, as ações movidas pelo Procurador-Geral da República têm o maior índice de acolhimento dentre todos os legitimados[111]. O parecer da Procuradoria-Geral da República – isto é, seu pronunciamento nos casos em que não é parte – é visto como expressão do interesse público primário que deve ser preservado na questão. A despeito da ausência de pesquisas empíricas, é possível intuir que um percentual muito significativo das decisões do STF acompanha a manifestação do Ministério Público Federal[112]. Já a atuação da Advocacia-Geral da União expressará o interesse ou o ponto de vista do Poder Executivo, especialmente do Presidente da República. Em questões que envolvem a Fazenda Pública, estudos empíricos certamente demonstrariam uma atuação favorável ao erário, revelada emblematicamente em questões de vulto, como as relativas ao FGTS, à Cofins ou ao IPI alíquota zero, por exemplo. Em todas elas, a Corte alterou ou a sua própria jurisprudência ou a do Superior Tribunal de Justiça, dando ganho de causa à União[113]. A cultura política dominante ainda considera aceitável que Ministros de Estado visitem pessoalmente os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por vezes após iniciados os julgamentos, para pedirem decisões favoráveis ao ponto de vista em que têm interesse[114].

Também o Congresso Nacional apresenta defesa em processos nos quais seja parte e, especialmente, em ações diretas contra leis federais. Sendo a ação direta de inconstitucionalidade contra lei estadual, também participam do processo a Assembleia Legislativa e o Governador do Estado. Note-se que o peso político do Estado pode fazer diferença em relação à deferência para com a legislação estadual. Por exemplo: após inúmeras decisões considerando inconstitucionais leis estaduais que proibiam o uso do amianto, o STF deixou de conceder medida cautelar para suspender lei do Estado de São Paulo que dispunha no mesmo sentido, revisitando tema que se encontrava já pacificado na Corte[115].

3. Perspectiva de cumprimento efetivo da decisão

Tribunais, como os titulares de poder em geral, não gostam de correr o risco de que suas decisões não sejam efetivamente cumpridas. E, portanto, esta é uma avaliação ordinariamente feita por órgãos judiciais, ainda que não seja explicitada. Tribunais não têm tropas nem a chave do cofre[116]. Em muitas situações, precisarão do Executivo, do Congresso ou mesmo da aceitação social para que suas deliberações sejam cumpridas. Há exemplos, em diferentes partes do mundo, de decisões que não se tornaram efetivas. Na Itália, aliás, o primeiro Presidente do Tribunal Constitucional renunciou precisamente por essa razão[117]. Na Alemanha, a decisão no célebre caso do crucifixo foi generalizadamente desrespeitada[118]. Nos Estados Unidos, a dessegregação imposta por Brown v. Board of Education, em decisão de 1954, levou mais de uma década para começar a ser efetivamente cumprida[119]. A decisão no caso Chada foi ignorada pelo Congresso[120]. No Brasil, há precedentes em que o STF fixou prazo para a atuação do legislador, sem que tivesse sido obedecido[121]. Em tema de intervenção federal, a despeito do manifesto descumprimento por Estados da Federação do dever constitucional de pagar precatórios, a Corte igualmente optou por linha jurisprudencial que não desmoralizasse suas decisões, diante das dificuldades financeiras dos entes estatais[122]. Outro exemplo emblemático, nesse domínio, foi a decisão proferida em 1955, quando da tentativa do Vice-Presidente Café Filho de retornar à presidência[123].

4. Circunstâncias internas dos órgãos colegiados

Inúmeros fatores extrajurídicos influenciam as decisões de um órgão colegiado[124]. No caso do Supremo Tribunal Federal, em particular, a primeira característica distintiva relevante é que o tribunal delibera em sessão pública. Na maior parte dos países, sem embargo da existência de uma audiência pública, de um hearing, com a intervenção dos advogados, o processo de discussão e decisão é interno, em conferência reservada, na qual participam apenas os ministros ou juízes. A deliberação pública é uma singularidade brasileira. A transmissão ao vivo dos julgamentos, por uma televisão oficial, constitui traço distintivo ainda mais original, talvez sem outro precedente pelo mundo afora[125]. Em parte como consequência desse modelo de votação pública, o sistema brasileiro segue um padrão agregativo e não propriamente deliberativo. Vale dizer: a decisão é produto da soma de votos individuais e não da construção argumentativa de pronunciamentos consensuais ou intermediários[126]. Isso não significa que não possam ocorrer mudanças de opinião durante os debates. Mas o modelo não é concebido como uma troca de impressões previamente à definição de uma posição final.

Nada obstante isso, um colegiado nunca será a mera soma de vontades individuais, mesmo em um sistema como o brasileiro. Não é incomum um Ministro curvar-se à posição da maioria, ao ver seu ponto de vista derrotado. Por vezes, os julgadores poderão p

  

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