As dúvidas depois da sagração 23/02/2010
- O Estado de S.Paulo
Passada a primeira das três festas eleitorais preparadas pelo PT para a ministra Dilma Rousseff, a da sagração do seu nome como pré-candidata à sucessão do presidente Lula -- a que se seguirão a da sua saída do governo, provavelmente em 31 de março, e a da convenção partidária que formalizará a sua candidatura, entre 10 e 30 junho --, sabe-se um pouco mais do que ela pretende fazer se chegar ao Planalto, mas continua-se sabendo muito pouco de sua autonomia de voo. Primeiro, durante a campanha, quando já não poderá ser conduzida pela figura galvanizadora do seu patrono, em palanques mal disfarçados de eventos administrativos. Lula disse que, entre a indicação e a eleição, estará "espiritualmente" ao seu lado. Disse também, é verdade, que "eleger a Dilma é a coisa mais importante do meu governo, a coisa prioritária na minha vida este ano". Ainda assim, não será dele, mas dela, a foto que o eleitor verá na urna eletrônica. Alguma diferença isso fará.
O maior patrimônio eleitoral da ministra -- se não o único -- é a formidável popularidade de seu patrocinador. O seu fardo, o contraste entre o desempenho de cada um diante das multidões. Não que a candidata seja o "poste" a que é maldosamente comparada. No seu discurso de uma hora aos petistas reunidos para a apoteose do 4º Congresso Nacional do partido, na manhã de sábado, ela se mostrou concentrada nas ideias e atenta às palavras que lia no teleprompter, escritas a muitas mãos. Mas o que seria em outras circunstâncias uma apresentação satisfatória, embora destituída de empatia, soou pior por ter sido precedida por um Lula que, como sempre, roubou a cena.
A segunda e mais importante dúvida sobre a autonomia de voo de Dilma diz respeito às suas condições pessoais, no eventual exercício do poder, de resistir às forças que incluíram no programa do PT para o seu governo as demandas radicais a que ela acedeu no papel como quem dá "um doce para as crianças", segundo um dirigente.
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A esquerda petista quer de Dilma o combate ao alegado monopólio dos meios eletrônicos de comunicação, taxação das grandes fortunas, apoio irrestrito ao Plano Nacional de Direitos Humanos, regras mais flexíveis para a desapropriação de terras, jornada de trabalho de 40 horas semanais com o mesmo salário e aceitação de homossexuais nas Forças Armadas. Nada, ou quase nada disso, passará pelo crivo do PMDB quando chegar a hora do preparo do programa comum da chapa para a qual indicará o vice. E o que passar muito dificilmente será acolhido pelo Congresso Nacional. Ao longo de dois mandatos, o primeiro-companheiro domou ou manipulou, conforme as conveniências, o petismo radical. De saída, tinha sobre o partido uma ascendência histórica irremediavelmente fora do alcance de uma presidente Dilma. Os êxitos da economia e o seu assombroso prestígio popular -- sem falar na caneta que nomeia e demite -- fizeram o resto.
De todo modo, uma coisa é o que os puros e duros da agremiação sonham levá-la a fazer, outra é o que sonham impedi-la de fazer: orientar as ações de governo, "sem sombra de dúvida", pela premissa da estabilidade macroeconômica, sem retrocessos nem aventuras. "Vamos manter o equilíbrio fiscal, o controle da inflação e a política de câmbio flutuante", prometeu aos 1.300 petistas que a ouviam -- dessa vez em eloquente silêncio. Tão revelador, por sinal, como os aplausos à patranha de que os efeitos da crise econômica mundial não foram maiores no País porque "os brasileiros conseguiram impedir a privatização da Petrobrás, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica ou de Furnas". Isso jamais esteve nos planos do governo anterior. Assim como não esteve nos planos de Lula nem, ao que tudo indica, nos de Dilma introduzir no Brasil um capitalismo de Estado. O negócio do lulismo é irrigar fartamente com dinheiro público a grande empresa privada que conhece o caminho das pedras para "induzir o desenvolvimento".
Tampouco não há por que duvidar da candidata quando diz preferir "as vozes oposicionistas, ainda quando mentirosas, injustas e caluniosas, ao silêncio das ditaduras". Estranha foi a ovação que se seguiu a essa profissão de fé na liberdade. Afinal, muitos companheiros que a aplaudiam são partidários do controle social dos meios de comunicação. O paradoxo simboliza as tensões entre a militância e a sucessora que Lula designou.