Sua Excelência, o jurado 25/03/2010
- Fábio Tofic Simantob*
O julgamento de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá reacende um importante debate: quem julga melhor, o juiz de carreira ou o júri, formado por pessoas do povo sem necessária formação jurídica?
A questão não é simples. A instituição do Tribunal do Júri no Brasil já passou por ameaças de extinção e sofreu reveses, sobretudo em períodos autoritários. Desde 1988 o Tribunal Popular está previsto no artigo 5.º da Constituição federal, com competência exclusiva para os crimes dolosos contra a vida (quando há intenção de matar). É cláusula pétrea constitucional.
Há, no entanto, enorme polêmica entre juristas acerca da eficácia do júri na realização da justiça. Alguns maldizem o tribunal do povo, ao argumento de que, ao contrário dos juízes togados, ou de carreira, o jurado não é obrigado a fundamentar sua decisão (o voto é secreto); não bastasse, argumentam os adversários do júri com o fato de que os jurados não estão obrigados à estrita observância da lei, ou melhor, dos direitos e garantias individuais do cidadão, sem os quais não pode haver julgamento justo. Pode haver outros argumentos contra a instituição do júri, mas esses dois talvez sejam os que neste momento merecem a nossa atenção.
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Em primeiro lugar, é preciso fugir dos chavões e entender o que significa "o jurado não precisa fundamentar sua decisão". Isso significa que o jurado não precisa explicar por que desprezou determinado elemento de prova em favor de outros tantos; o jurado, todavia, deve responder a algumas perguntas obrigatórias, como: "O réu desferiu os disparos contra a vítima, causando os ferimentos descritos no laudo necroscópico?" (aqui o jurado decide se o réu é um autor do crime ou não); "estes ferimentos foram a causa da morte?" (pode haver discussão na causa sobre se a vítima morreu em razão dos golpes ou de outra causa); e ainda os jurados são obrigados a responder a quesitos sobre circunstâncias que aumentam ou atenuam a pena, formulados em perguntas como, por exemplo, "se o réu agiu de forma a impossibilitar a defesa da vítima" (se responderem sim, o homicídio passa de simples a qualificado), ou se agiu sob forte emoção (reconhecem o homicídio privilegiado, ou seja, com redução de pena), ou se agiu com intenção de matar. E, por fim, se, apesar de tudo, absolvem ou não o réu.
Isto é, uma vez encerrada a votação, o resultado jurídico do veredicto (homicídio qualificado, homicídio privilegiado, homicídio simples ou inocência absoluta) está gravado nas respostas dadas aos quesitos; o juiz presidente apenas interpreta as respostas e aplica a pena prevista em lei. Veja-se, pois, que pelas respostas aos quesitos é possível aferir o que os jurados entenderam a respeito do caso. Eles só não explicam por que preferiram uma tese em desfavor de outra ou outras.
Enganam-se, por outro lado, os que acusam os jurados de maus juízes por não terem formação jurídica. Os que assim entendem se esquecem de que o jurado não decide questões técnicas do Direito. Exemplificando: os jurados não decidem sobre o cabimento ou não de uma prisão preventiva; não decidem se há provas ilícitas no processo (questão sobre a qual o juiz do caso e, eventualmente, os tribunais decidem antes do julgamento, na chamada sentença de pronúncia, quando se faz uma espécie de saneamento do processo). Os jurados decidem sobre uma única coisa: a ocorrência ou não de fatos, com base na prova já colhida nos autos.
É importante observar, nesse passo, que o Direito brasileiro adota o sistema processual da livre apreciação da prova. Quer dizer, dentre as provas válidas constantes do processo, o juiz é livre para dar a cada uma delas o peso que melhor lhe parecer, preterindo umas em favor das outras. No nosso sistema nenhuma prova tem valor absoluto, ou melhor, todas estão sujeitas a confronto, basta que alguma das partes as conteste mostrando os argumentos. A lei não diz quantos indícios (ou provas circunstanciais, como as chamam os americanos) são suficientes para condenar alguém. A lei tampouco oferece uma escala de valores entre provas, de modo que tudo em matéria de prova, a rigor, acaba sendo decidido de acordo com a íntima convicção do juiz.
Logo, a questão que se coloca é uma só: se o exame da prova é livre e respeita a convicção íntima do juiz, e não regras jurídicas rígidas, por que o juiz togado seria mais capacitado para examinar a prova do crime do que o cidadão comum? Em trabalho que fez em defesa do júri, o saudoso professor Goffredo da Silva Telles Júnior afirmava: "O Jury foi creado para tentar fazer a individualização da pena" (em Justiça e Jury no Estado Moderno, 1938). O que o professor do Largo de São Francisco queria dizer com isso é muito simples. O júri só pensa no caso concreto, não está preocupado em manter a coerência com o caso seguinte. É livre, assim, mais do que qualquer outro juiz, para decidir como lhe parecer mais justo e razoável naquele caso e somente naquele caso. A harmonia entre o veredicto e o sistema jurídico vigente não deixa de ser regulada pelos tribunais e juízes togados, que impulsionam o processo até o dia do julgamento popular. Ao júri resta preencher os microespaços vazios que a lei geral não é capaz de alcançar e individualizar. Nessa missão contam com um poderoso instrumento cognitivo, comum a todos, bacharéis ou não, e que Bergson ajudou a credibilizar na busca do conhecimento: a intuição. No julgamento penal a alma humana é posta a toda prova e, nessa seara, um jardineiro é tão mestre quanto o rei. Claro que pode haver injustiças, mas a experiência mostra que o júri mais acerta do que erra.
Em passagem de brilhantismo ímpar, o professor Goffredo sintetiza a defesa do júri, concluindo: "Presume-se que o util, para a sociedade, é o que estabeleceu a lei escripta. O legislador, porém, creando o Jury, prova conhecer a insuficiência das leis humanas, e a supremacia do justo sobre o util aparente." Já se disse que o júri acerta até quando erra...