O único no passo certo 30/03/2010
- O Estado de S.Paulo
A revelação de que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) suspeita de que o Irã se prepara para construir mais duas instalações clandestinas de enriquecimento de urânio, em novo desafio às Nações Unidas, provavelmente faz parte dos esforços dos Estados Unidos e da União Europeia para deixar claro que passou da hora de discutir se uma quarta rodada de sanções internacionais deve ser imposta à República Islâmica. Enquanto o governo brasileiro insiste em que ainda há espaço para negociar com Teerã o seu programa nuclear suspeito de se destinar a fins militares, o que se debate nas principais capitais do mundo é a natureza e o alcance das sanções a serem levadas ao Conselho de Segurança da ONU -- e quando fazê-lo.
O anacronismo da posição brasileira pode ser avaliado por dois movimentos correlatos em curso. Um é a disposição dos Estados Unidos de abrandar o seu projeto -- cuja versão original falava em cortar o acesso do Irã aos mercados financeiros globais e fechar o espaço aéreo internacional a voos iranianos de carga -- para obter a adesão da Rússia e da China a algum tipo de sanção. O outro movimento, menos perceptível, é a tendência chinesa a finalmente admitir o princípio da punição ao Irã para levá-lo a desistir da ambição de se tornar uma potência atômica, desde que os castigos a serem infligidos não prejudiquem a economia do país. Moscou andou mais do que Pequim nessa direção -- e suas relações com os Estados Unidos passam por uma fase primaveril.
O Brasil, que tem se oferecido para ocupar um assento à mesa em que os grandes tratam da periclitante estabilidade política no Oriente Médio, corre o risco de perder de vez essa oportunidade com a sua diplomacia que lembra o recruta que se imaginava o único a marchar no passo certo. Não é impossível que, ao fim e ao cabo, a China -- que importa petróleo e gás do Irã -- se abstenha de aprovar o novo pacote de sanções. Mas, de qualquer modo, os seus dirigentes parecem atentos ao enfarruscamento do clima que cerca a questão iraniana. Já o governo Lula -- que invoca preocupações estratégicas com o Oriente Médio que em momento algum conseguiu dizer quais seriam ? se distancia dos seus interlocutores e constrói castelos no ar.
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Na semana passada, por exemplo, o chanceler Celso Amorim disse ao novo diretor-geral da AIEA, Yukiya Amano, que bastará manter o Irã sob pressão, sem adotar sanções adicionais, portanto, para que aceite negociar. O retrospecto, pelo menos desde 2003, mostra que o diálogo apenas serviu para Teerã trapacear e ganhar tempo. Em setembro último, o governo iraniano só informou que vinha construindo uma instalação de enriquecimento de urânio nas montanhas de Qum depois que os EUA revelaram a sua existência. Em outubro, o representante do Irã na AIEA concordou em enviar urânio levemente enriquecido para a Rússia e a França, onde seria beneficiado para uso em um reator de pesquisa em Teerã. Em janeiro, o presidente Mahmoud Ahmadinejad deu o dito pelo não dito.
Por isso, a AIEA e os serviços ocidentais de inteligência levaram a sério a recente declaração do chefe do programa nuclear do Irã, Ali Akbar Salehi, de que o país estaria para iniciar a construção de duas outras plantas como a de Qum. Chama a atenção que, embora se saiba que o Irã vem fabricando novas centrífugas para enriquecer urânio, o equipamento não esteja à vista em nenhuma das duas instalações abertas aos inspetores internacionais. As projeções sobre o tempo que o país ainda necessitaria para fazer a bomba variam muito, mas há um consenso de que as sanções devem ser votadas já em abril no Conselho de Segurança. O Brasil, que ocupa uma das suas vagas temporárias, gostaria que isso acontecesse apenas depois da visita do presidente Lula a Teerã, em maio.
Ele defende a conversa com Ahmadinejad não apenas sobre o problema nuclear, mas também sobre o impasse entre israelenses e palestinos. No primeiro caso, pode ser uma futilidade. No segundo, é uma aberração. À parte tudo o mais, Israel jamais aceitaria que tivesse voz no processo de paz com a Autoridade Palestina um presidente que prega a sua destruição. Mas essa é a cabeça de Lula.