O elogio da voracidade 04/06/2010
- O Estado de S.Paulo
Os brasileiros pagam um volume de impostos de Primeiro Mundo em troca de serviços de país subdesenvolvido e ainda têm de sustentar o empreguismo no governo e as benesses concedidas a pelegos amigos do poder.
Esses são os fatos, mas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva contou uma história diferente em seu discurso, em Brasília, na reunião da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
"Quem tem carga tributária de 10% não tem Estado. O Estado não pode fazer absolutamente nada", disse o presidente. Os países desenvolvidos têm boas políticas sociais, argumentou, porque têm a tributação mais elevada, e citou EUA, Alemanha, França, Dinamarca e Suécia como exemplos.
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Há muita má-fé nessa argumentação e alguma ignorância.
Para começar, a opção não é entre uma carga tributária de 10% do PIB, obviamente muito baixa, e uma de 35%, 40% ou mais. Em segundo lugar, nem todos os países desenvolvidos ou emergentes têm impostos e contribuições tão pesados quanto os do Brasil.
A tributação nos EUA fica geralmente abaixo de 30% do PIB, assim como na Coreia, Japão e México. Na Austrália, oscila em torno de 30%, assim como na Suíça.
Em todos esses países os contribuintes pagam menos que no Brasil e recebem serviços muito melhores que aqueles proporcionados aos brasileiros.
Na Europa mais desenvolvida a tributação média é muito próxima da brasileira, estimada na faixa de 35% a 38% do PIB.
Mas quem ousará confrontar os serviços de educação, saúde, segurança e justiça desses países com os do Brasil -- além, é claro, dos gastos públicos em pesquisa, tecnologia, infraestrutura e transportes?
Como ocorre com frequência, o presidente Lula se enrolou na confusão de ideias e informações defeituosas, mal assimiladas e mal combinadas.
Carga fiscal pesada não é garantia de bons serviços públicos, como prova a lista de exemplos de países com bons Índices de Desenvolvimento Humano e tributação muito menor que a do Brasil (Coreia, México, Austrália, etc.).
Quanto aos países da Europa mais desenvolvida, seus elevados impostos custeiam funções públicas definidas com base em concepções amadurecidas e consolidadas democraticamente.
Esses países dispõem de um funcionalismo altamente profissional, estável e pouco permeável a decisões baseadas no companheirismo e no loteamento de cargos.
Os partidos se comprometem com a gestão fiscal e têm de se ajustar a padrões socialmente aceitos, mesmo quando executam políticas discutíveis, como a dos subsídios à agricultura.
O documento básico apresentado pela Cepal, intitulado "A Hora da Igualdade", contém um capítulo sobre como a tributação e o gasto público podem promover o desenvolvimento social.
A estrutura tributária da maior parte dos países da região é descrita como regressiva, isto é, desfavorável à igualdade, e insuficiente para o custeio das políticas necessárias. A tributação média da América Latina equivalia em 2008 a 18,7% do PIB.
O presidente Lula deve ter recebido alguma informação sobre esse texto. Mas o mesmo capítulo aponta quatro países com carga tributária elevada em relação ao PIB per capita: Argentina, Brasil, Bolívia e Nicarágua.
O Brasil aparece em primeiro lugar, com um peso fiscal equivalente a 35,5% do PIB, bem acima da Argentina (30,6%). Em 2007, a carga tributária da OCDE (formada por 31 dos países mais desenvolvidos) representou quase o dobro da latino-americana -- e praticamente igual à brasileira, poderiam ter acrescentado os autores do estudo.
O discurso foi um rosário de disparates e de fantasias, e não só sobre impostos. O presidente Lula se vangloriou de haver quebrado o "paradigma" da oposição entre exportar e atender o mercado interno. Nada mais falso.
Ao chegar ao governo ele ainda se referiu à necessidade de garantir o abastecimento interno antes de exportar -- uma evidente bobagem, porque a agricultura e outros setores já se haviam provado capazes de atender o mercado brasileiro e de competir no exterior. Os últimos a perceber esse fato foram Lula e a sua assessoria.