O companheiro Ahmadinejad 14/06/2010
- João Pereira Coutinho*
Estranhos tempos. Leio o jornal do dia e encontro uma foto do presidente Lula na companhia de Mahmoud Ahmadinejad. Isso estraga o meu café da manhã.
Lula, goste-se ou desgoste-se, é o produto democrático de um país democrático. Ahmadinejad é o oposto: o rosto de um regime sinistro e teocrático. Serei o único a ficar com o estômago do avesso quando vejo essas duas figuras em alegre intimidade?
Esse, aliás, foi o problema central com o famoso acordo nuclear do Brasil, da Turquia e do Irã. Tecnicamente, o acordo não resolveria o dossiê nuclear pelo simples motivo de que enviar urânio baixamente enriquecido para o exterior não impediria o regime iraniano de continuar a sua busca interna da bomba. Pelo contrário: o regime teria mais tempo para as suas aventuras e um álibi perfeito para silenciar a ONU e a Agência Internacional de Energia Atômica.
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Mas o problema não era apenas técnico. O problema era sobretudo moral: depois da forma repetida como o regime iraniano mentiu à comunidade internacional sobre o seu programa nuclear; depois das afirmações genocidas de Ahmadinejad contra Israel; depois das ligações continuadas do regime aos mais criminosos grupos terroristas que operam no Oriente Médio; depois de tudo isso, o Brasil e a Turquia disponibilizavam-se para serem um escudo de protecção para Ahmadinejad.
O acordo falhou, é certo. Mas não falhou o voto contra do Brasil e da Turquia a novas sanções contra o regime iraniano no Conselho de Segurança da ONU.
Ponto prévio: não acredito que novas sanções contra o regime possam impedir o desfecho funesto que se imagina. E não acredito por motivos práticos e históricos.
Por motivos práticos, o "não" da Turquia é o primeiro aviso de que o país do primeiro-ministro Erdogan permitirá todo o tipo de tráfego na sua fronteira turco-iraniana, comprometendo o merecido isolamento de Teerã.
E, por motivos históricos, quando um país está disposto a pagar qualquer preço -- material e diplomático -- para obter capacidade ou armamento nucleares, o mínimo a fazer é preparar o mundo para essa inevitabilidade. Como defendem James Lindsay e Ray Takeyh em número recente da "Foreign Affairs", a comunidade internacional, com os Estados Unidos à cabeça, deve estabelecer as "red lines" que o regime não poderá cruzar, sob pena de retaliação imediata. Isso, claro, se Israel não tratar do assunto por suas próprias mãos.
Mas o "não" do Brasil significa mais do que uma descrença nas novas sanções da ONU. Em primeiro lugar, significa que o Brasil ocupa uma posição ainda mais extremista do que o Líbano, que preferiu abster-se na votação final. O Líbano, será bom lembrar, conta no seu território com a presença do Hizbollah, um grupo-satélite de Teerã. E não deixa de ser irónico que Lula esteja mais próximo do Irã do que um país que o Irã parcialmente controla.
E se Lula está mais próximo do Irã, isso significa que ele está mais longe das democracias ocidentais e dos aliados clássicos do Brasil. Nada que pareça preocupar Lula e o seu governo. Para o presidente, a votação do Conselho de Segurança apenas expressa a "birra" de alguns países. Para logo concluir: "Espero que o companheiro Ahmadinejad continue tranquilo."
Exato: o "companheiro" Ahmadinejad. Um "companheiro" que, há precisamente um ano, mandou prender mais de 5 mil manifestantes que tomaram as ruas de Teerã depois de eleições fraudulentas. Um "companheiro" que mantém centenas de ativistas na cadeia. Um "companheiro" que tortura e mata através da sua Guarda Revolucionária. Um "companheiro" que treina, arma e financia grupos terroristas, como o Hamas ou o referido Hizbollah. Eis o "companheiro" que Lula pretende ver "tranquilo".
Para um país, como o Brasil, que viveu sob ditadura militar; e que lutou, com esforço, pela sua democracia atual, a amizade entre Lula e Ahmadinejad é um insulto e uma infâmia. O Brasil não merecia "companheiros" assim.
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*João Pereira Coutinho é colunista da Folha de S.Paulo