A Alca e os complexados 14/09/2010
- O Estado de S.Paulo
O chanceler Celso Amorim vangloriou-se em Genebra de uma das maiores tolices cometidas pela diplomacia brasileira em várias décadas. Segundo ele, o Brasil ganhou por haver rejeitado em 2003 o projeto de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A declaração foi feita num seminário sobre segurança internacional. No auditório havia militares e estrategistas americanos e europeus. Alguns deles deviam saber alguma coisa sobre economia e comércio internacional. Devem ter ficado perplexos diante das explicações do ministro brasileiro. Depois, devem ter rido muito.
Segundo o chanceler, a aceitação da Alca teria consolidado a posição da América Latina como quintal dos Estados Unidos. O governo brasileiro, de acordo com seu arrazoado, preferiu promover um novo arranjo regional, trabalhando pela integração sul-americana. Esse trabalho foi realizado, na área comercial, por meio de acordos entre o Mercosul e parceiros da região.
Uma das consequências dessa política, explicou o chanceler, foi a redução da importância do mercado americano como destino das exportações brasileiras. Há oito anos, 26% dos dólares obtidos pelo Brasil no comércio exterior vinham dos Estados Unidos. Hoje essa participação é inferior a 10% (de fato, 9,9% entre janeiro e agosto deste ano).
É fácil perceber o outro lado da história. As exportações do Brasil para os EUA poderiam ter crescido mais do que cresceram nesse período. Entre 2002 e 2008, quando começou a fase aguda da crise, as importações americanas de bens aumentaram 82,6%, segundo o governo americano. Nesse período, as compras de produtos brasileiros cresceram 94,6%. Bom desempenho do Brasil? Nem tanto. Outros países tiraram mais proveito da prosperidade da maior economia do mundo.
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Na prática, exportadores brasileiros deixaram de conquistar fatias desse mercado, ocupadas por produtores de várias partes do mundo. Entre os maiores beneficiários estiveram os chineses. Entre 2002 e 2008, suas exportações para os EUA cresceram 170,2%.
Robert Zoellick, principal negociador comercial dos EUA naquela época, havia prevenido: se a Alca fosse criada, os brasileiros teriam alguns anos de vantagem sobre os chineses. Estava certo, mas o presidente Lula havia decidido enterrar o projeto de integração comercial do hemisfério, com a ajuda do governo argentino.
Mas o projeto de integração foi enterrado apenas para alguns países da região. O México já era sócio do Nafta, o acordo comercial dos três países da América do Norte. Sem a Alca, os EUA concluíram acertos comerciais com países do hemisfério. Um dos sul-americanos, o Chile, já se havia antecipado. Suas exportações para os EUA aumentaram 118,2% entre 2002 e 2008. As da Colômbia cresceram 137,8%. Excluídas as quatro maiores economias da região - Brasil, Argentina, México e Venezuela -, as vendas da América Latina e do Caribe para os EUA expandiram-se 112,7% nesses anos.
Ao mesmo tempo, ampliaram-se as exportações dos Estados Unidos para a América Latina. O Brasil não tirou proveito significativo das preferências negociadas com os sul-americanos, até porque nos anos seguintes houve a invasão chinesa. A China tornou-se o maior mercado para produtos brasileiros, mas quase só compra matérias-primas e bens intermediários. Os EUA sempre foram mais importantes para os exportadores brasileiros de manufaturados. Mas Brasília desprezou esse fato e hoje se vangloria de ver o Brasil transformado num grande fornecedor de commodities para a China. Para isso, não seria preciso renunciar à Alca.
O "resto do mundo" também não desprezou o mercado americano. As exportações da Holanda para os EUA aumentaram 119,9% naqueles anos; as da Suíça, 148%; as da Áustria, 119,6%; e as da África do Sul, 147%. Enquanto isso, o Brasil ficou preso a um Mercosul emperrado, sem nenhum acordo internacional importante, enquanto seus parceiros "estratégicos" tratavam de ocupar os mercados do mundo rico. Esses países, sim, não têm complexo de vira-lata.