Crença religiosa e manipulação política 10/10/2010
- Sergio Fausto*
Já na etapa final do primeiro turno e mais ainda neste início de segundo turno, há uma corrida para tranquilizar os eleitores evangélicos e católicos que temem a descriminalização do aborto. Fala-se em defesa dos "valores da vida", expressão enigmática que visa a estigmatizar quem ouse pôr em dúvida um dogma religioso segundo o qual a vida tem início no ato da fecundação do óvulo por um espermatozoide.
Em nome desse dogma, produziu-se uma chantagem eleitoral: quem não rezar o credo da criminalização do aborto será punido com a perda de uma fatia de eleitores que pode ser decisiva para a vitória ou a derrota. Em cena patética, candidatos desdizem o que disseram ou se esmeram em reforçar supostas credenciais conservadoras na matéria. Um dos partidos, segundo a imprensa, se dispõe a rasgar parte do programa de sua candidata. Todos amedrontados pela ameaça do voto religioso, mais temível do que as próprias labaredas do inferno. Covardia cívica de quem anonimamente alimenta as baterias do dogmatismo e de quem se dobra e se desdobra para se ajustar ao figurino conservador, mesmo que lhe caia mal.
A manipulação de crenças religiosas para fins político-eleitorais é um veneno para a democracia e uma ameaça ao Estado laico. Crenças religiosas fundam-se em dogmas e sustentam valores absolutos. A liberdade humana, nessa esfera, restringe-se a aderir, pela fé, aos valores professados ou rejeitá-los. Se a religião é uma esfera de verdades absolutas, a democracia é um espaço de verdades parciais, sujeitas ao contraditório e ao compromisso entre valores e interesses distintos. O debate público democrático é permeado pela emoção, mas não se fecha à análise racional dos dilemas que surgem quando valores absolutos abstratos se chocam contra o chão duro da realidade. No caso em pauta, se, de um lado, não há evidência de que a descriminalização aumente o número de abortos realizados, de outro, sobram evidências de que os abortos feitos em clínicas clandestinas ou por conta própria são causa importante de morte, doença e esterilidade entre as mulheres mais pobres. De que lado estão os "valores da vida"?
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A relativa separação entre a esfera da religião e a da política é uma conquista da civilização ocidental. Acreditava-se que estivesse consolidada na maioria dos países do Ocidente, mas a História recente mostrou que não, em especial nos Estados Unidos. Lá, a partir dos anos 80 do século passado, cresceram e organizaram-se politicamente as denominações evangélicas não tradicionais. Multiplicaram-se os "pastores eletrônicos" e seus programas nos meios de comunicação de massa. Os novos evangélicos passaram a representar cerca de 30% da população, com um peso ainda maior no eleitorado, dado o seu maior comparecimento às urnas. Conquistaram o Partido Republicano e elegeram um dos seus, George W. Bush, para a presidência da República. Na Casa Branca, ele congelou as verbas federais para pesquisas com células-tronco embrionárias, defendeu a reza na escola pública, atacou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, lançou o país a uma aventura no Iraque como se fosse um cruzado liderando a civilização cristã. Vinte anos antes, as denominações evangélicas fundamentalistas pareciam ser um fenômeno politicamente inofensivo...
No Brasil, é crescente a proporção de pessoas que se declaram evangélicas. Além de conforto espiritual, elas encontram na igreja uma comunidade religiosa que lhes oferece proteção contra as adversidades e as ajuda a progredir materialmente na vida, pela rede de relações que estabelecem. E isso é muito bom. Tenha-se ou não crença religiosa, nenhum de nós pode dispensar algum tipo de espiritualidade e inserção comunitária. Marx dizia que "a religião é o ópio do povo", mas completava: "O suspiro da criatura oprimida, o calor de um mundo sem coração."
Esse é o lado bom da história. O lado menos bom é o fato de que, ao contrário do catolicismo brando e sincrético da tradição brasileira, há maior fervor e dogmatismo religioso entre os evangélicos, em alguns casos com intolerância em relação às religiões afro-brasileiras, vistas como demoníacas. Pior ainda é o fato de que parte das igrejas evangélicas se tornou um obscuro e lucrativo empreendimento comercial, em que se misturam religião, política e negócio, em especial no setor dos meios de comunicação de massa.
Nos muitos programas evangélicos de televisão e rádio se ensina que o mundo se divide entre Deus, representado por Jesus, e o demônio, tão onipresente quanto aquele. Num mundo divido entre o Bem e o Mal, não há liberdade de escolha possível para as pessoas de bom caráter. Afinal, quem será pelo demônio? Só os maus.
Em matéria de liberdade de escolha, a Igreja Católica não fica atrás. Basta pensar na longa lista de interditos: preservativos, sexo antes do casamento, para não falar em casamento entre pessoas do mesmo sexo. Tudo isso em nome dos "valores da vida e da família", como se vida e família não fossem construções humanas que admitem grande variação na forma como são vistas e vividas. O Estado laico e democrático existe para assegurar essa pluralidade e para permitir a convivência entre crenças e preferências diferentes.
O tema do aborto não foi trazido ao debate político para ser esclarecido e debatido a sério. Ninguém o propôs abertamente. Surgiu sub-repticiamente, por oportunismo eleitoral. E tem merecido uma resposta não menos oportunista. Pode ser que renda os frutos eleitorais pretendidos, pode ser que não. Substantivamente, trata-se de muito barulho por nada, já que nenhum presidente ou presidenta da República, não importa quão grande seja sua maioria no Congresso, terá condições de impor a sua opinião em matéria tão sensível.
Não quer dizer que ela não deva ser discutida. Mas não agora, não desse jeito.
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*DIRETOR EXECUTIVO DO iFHC, É MEMBRO DO GACINT-USP E-MAIL: SFAUSTO40@HOTMAIL.COM