Filhos indesejados 03/11/2010
- Antonio Cláudio, Mariz de Oliveira
Como a questão do aborto, durante a campanha eleitoral, veio para o palco dos debates, os candidatos poderiam tê-la colocado para a reflexão da sociedade, emprestando-lhe profundidade e abrangência. Perderam, no entanto, excelente oportunidade de dar à sociedade elementos aptos para discutir o árido tema com serenidade e isenção, afastando o alto grau de desconhecimento, preconceito e radicalismo que sempre pairou sobre o assunto. Foram extremamente parcimoniosos, pois se limitaram a colocar o problema como sendo de saúde pública. Argumento reducionista e que não satisfaz, pois tenta apenas simplificar e deslocar o tema sem enfrentá-lo.
Tradicionalmente, o aborto vem sendo tratado no Brasil de forma maniqueísta. Ou se é a favor ou se é contra, sem quaisquer abordagens outras, dentre as inúmeras e de variadas naturezas que ele comporta. Os seus defensores alegam o direito à liberdade que tem a mulher sobre o seu corpo. Os que lhe são contrários, e a favor de sua criminalização, invocam o direito à vida. A única discutição travada versa sobre o marco inicial da vida. Discussão milenar e inconclusa.
Vincular o aborto exclusivamente ao direito à vida é dar ao problema uma dimensão menor do que ele realmente tem. É evidente que sob esse único enfoque ninguém, pelo menos em teoria, é a favor da interrupção da gravidez. Todos louvam a vida e a maternidade.
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No entanto, o direito à vida no caso do aborto não se coloca como absoluto. A própria legislação penal, que o considera um delito, mostra que outros direitos devem ser levados em conta. Estão eles relacionados às inúmeras situações em que surge uma gravidez, tendo em vista condições sociais, de saúde e biológicas, dentre outras. Assim, o Código Penal prevê duas condutas não consideradas como criminosas: quando o aborto for o único meio para preservar a vida da gestante e quando a gravidez for produto de estupro.
Esta última exceção contém uma questão muito pouco ou nada ventilada, que é a da maternidade não desejada, que gerará um filho malquerido, predestinado ao abandono ou ao desprezo. O legislador de 1940 foi extremamente modesto quanto aos casos de legitimação do aborto. É hora de se discutir com racionalidade, sem preconceitos e com os olhos postos na realidade que nos cerca outras hipóteses autorizadores da interrupção da gravidez.
Despreocupação absoluta com o filho não querido e prova de verdadeiro desvario e obscurantismo encontramos na atitude de uma autoridade religiosa que excomungou uma mãe responsável pelo aborto de sua filha de 9 anos, grávida de gêmeos, em razão de estupro praticado por seu padrasto. De difícil compreensão é a posição daqueles que se opõem ao aborto do anencéfalo. Os "defensores da vida" preferem o nascimento de uma criança sem cérebro a abandonar a sua obstinada e inflexível postura contra o aborto.
A intransigente defesa do nascimento a todo e qualquer custo desconsidera a situação da mulher pobre que efetua o aborto em condições precárias, de elevado risco para a sua saúde, a sua vida e a sua dignidade pessoal. Sabe-se ser significativo o número dessas mulheres que vão a óbito.
Dir-se-á que tais mulheres correm risco porque querem, bastaria que dessem livre curso à sua gravidez. Afirmação leviana e até cínica, pois despreza as causas que levam milhares de mulheres pobres a abortar anualmente, impelidas por suas cruéis carências e cientes de que estas acompanharão os filhos que vierem a ter.
Elas gostariam de ser mães. Não o são porque temem a miséria para si e para o filho. Mulheres para quem a maternidade se tornará um estigma e um fardo.
Poder-se-á argumentar que ao lado dessas mulheres economicamente incapazes existem as bem nascidas, bem criadas, bem educadas, absolutamente aptas à maternidade, mas que não a assumem. E essas que não têm razões materiais para interromper a gravidez também têm direito ao aborto?
Em um ou em outro caso se terá um ser mal amado e predestinado ao abandono, no primeiro, e ao desprezo, no segundo. Se o aborto é imoral, e o é, imoral, inumano e antissocial também é um filho rejeitado, fruto de uma maternidade indesejada.
Na verdade, a questão do filho não desejado não está sendo colocada como hipótese de legitimação do aborto, mas sim para que se faça uma reflexão sobre a necessidade de se discutir amplamente esse tema, especialmente sob a perspectiva de que ele envolve múltiplos e diferentes direitos, valores e situações humanas relevantes, que não podem ser esquecidas em nome de uma posição radical, hermética, maniqueísta, como se representasse uma verdade axiomática.
Quanto às mais abastadas, sabe-se lá que razões as terão levado a abortar. Quais fatores objetivos, quais dramas íntimos, que dúvidas e angústias as assaltaram. Há de se partir sempre da premissa de que nenhuma mulher rejeita a maternidade, abdica da graça de ser mãe, sem o concurso de fortes razões.
Note-se: aqueles que são favoráveis à flexibilização da lei penal, com a adoção de novos casos de isenção de crime, ou mesmo a favor da descriminalização não são defensores necessários do aborto. A posição contrária ao aborto significa uma devoção sagrada pela maternidade, uma crença inabalável no porvir representado pela criança, enfim, uma declaração de fé na vida e no homem. Mas há uma distância abismal entre o repúdio ao aborto e as consequências penais pela sua prática. Estas, como postas pela lei, são inaceitáveis, porque desprezam o substrato humano embutido na maioria dos casos de aborto, consideram a sua ineficácia inibitória e desconhecem os malefícios dos abortos praticados no País. Não será ameaçando com prisão que nós estaremos valorizando a vida, estimulando a maternidade e recebendo filhos amados.