O amanhã de Lula, Serra e Marina 07/11/2010
- Gaudêncio Torquato*
A pergunta passa a frequentar a mesa política: o que farão, sem mandato, Luiz Inácio Lula da Silva, José Serra e Marina Silva? Os cenários desenhados pela resposta, por mais coloridos que sejam, deixam espaços em branco, porquanto entre os fatores que ajudam a tornar viáveis metas na arena política há aqueles que passam ao largo da vontade das pessoas. São os fatores imponderáveis que decorrem de circunstâncias temporais. O ciclo de vida de um ator político decorre, em primeiro lugar, dos vetores de força que o sustentam, entre os quais a motivação, a história, o domínio sobre a situação e o controle exercido sobre outros atores. Quanto à motivação, Lula, Serra e Marina dão mostras de que não pretendem abandonar tão cedo a competição. Dispõe cada qual de capital acumulado para gastar em futuros empreendimentos. O presidente da República sai da liça como responsável direto pela vitória de sua candidata; o ex-governador paulista brande o argumento de que, apesar da derrota, sua candidatura propiciou a eleição de oito governadores tucanos e dois do DEM, cuja administração abrigará 52% da população e mais de 50% do produto interno bruto (PIB) nacional. Já Marina, com quase 20% dos votos válidos, levanta o troféu da força moral, sendo este, por si, patrimônio suficiente para abrir frestas nas portas do amanhã.
O presidente que dá adeus reúne condição excepcional para alargar os horizontes. Governante dos mais admirados da História brasileira, com prestígio comparável ao de Getúlio Vargas e agora arquiteto da vitória de Dilma, esse último exemplar carismático estabeleceu simbiose tão intensa com o poder que não se imagina longe dele por muito tempo. Com 84% de aprovação, Lula dispõe de densa camada de gordura para queimar no caldeirão político. Intuitivo e perspicaz, afasta-se da pupila, num primeiro momento, para que ela desenvolva sua própria identidade. Um dos maiores desafios de um governante é fixar a marca pessoal, a maneira própria de comando, diferencial indispensável para angariar credibilidade. O ¨paizão¨ se esmerará na cautela, seja para não ofuscar os espaços da nova governante - e ser queimado pelo flash midiático -, seja para ela se sentir à vontade no exercício da autoridade. Mas prezará ser solicitado para emprestar seus saberes nos campos da política, da administração e da malícia, dando conselhos, sugerindo, orientando ajustes. E não se espere o desfecho, por alguns apregoado, da ¨criatura voltando-se contra o criador¨, no figurino Fleury contra Quércia ou Pitta contra Maluf. E a razão é a morfologia partidária: o PT, mais que uma sigla, é uma religião. Impõe dogmas. Voltar-se contra o Senhor dos Senhores seria a maior traição ao partido. Um suicídio.
Diferentemente de Fernando Henrique Cardoso, que encerrou o ciclo da representação popular por achar concluída a sua missão, Lula não se vê fora da política. E mais, da política militante, que exerce com desenvoltura desde os tempos do sindicalismo. Seu hábitat é o palanque, sua voz é a corneta de mobilização e seu prazer é o convívio com a massa, de onde extrai a vitamina que oxigena seu espírito. Não conseguirá viver longe de plateias. Correrá o mundo, a partir do continente africano, e, como caixeiro-viajante, vai ¨vender¨ os programas sociais que implantou. Sua fama abrirá portões. Se quiser, poderá comandar ações internacionais nas frentes sociais e de solidariedade. Mas seu foco continuarão a ser os fundões do País, onde criou profundas raízes desde os tempos das Caravanas da Cidadania. Por isso não se descartam novas viagens de Lula pelo território nacional, agora sob o argumento de avaliar a seara plantada. E apurar a temperatura social. Nisso é um craque. Entre viagens, aqui e alhures, palestras e encontros, Luiz Inácio disporá de tempo para reorientar rumos do PT e harmonizar as alas, que vivem em dissensão. O terceiro olho - o do meio da testa - contemplará horizontes mais largos. Céu de brigadeiro ou nuvens cinzentas, nas margens de 2014, ajudarão a balizar a decisão de voltar ou não à trilha de Brasília, que tão bem conhece.
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José Serra, por sua vez, dispõe de um capital que tende a se esvair ao longo do tempo. No curto prazo, os recursos acumulados têm alto poder de compra. Basta anotar que a população se dividiu quase meio a meio, com parcela ponderável adquirindo suas ações. O ex-governador, porém, amarga duas derrotas para a Presidência e, diferentemente de Lula (que também as experimentou), não tem o carisma deste. Nem a proteção do cobertor social costurado pelo lulismo. Teria à disposição daqui a dois anos o amplo espaço da Prefeitura de São Paulo. Seria certamente forte candidato, ancorado no recall da candidatura presidencial. Tal opção, porém, soaria como um passo atrás. O ¨até logo¨ com que agradeceu aos eleitores pode ser entendido como ¨voltarei assim que for possível¨. Acontece que sua visibilidade de árvore mais alta na floresta tucana faz sombra ao florescimento de novos exemplares. Seu desafio é o de se encaixar no projeto de renovação do PSDB. O partido está a exigir uma reaprendizagem na forma de fazer oposição, tentando chegar às massas, das quais nunca se aproximou.
De Marina Silva, que se saiu bem na radiografia eleitoral, espera-se papel de indutora de novos ideários, a partir do engajamento de conjuntos médios formadores de opinião e da mobilização de segmentos jovens. Dispõe ela de boa reserva de carisma, acentuado por sua estética que evoca Gandhi. Sua ação poderá ser amplificada por núcleos da intelligentzia e setores engajados na causa ambiental. Identifica-se, ainda, com a bandeira ética, que se apresenta como símbolo da louvação nacional. A acriana terá sempre boa acolhida nos palcos das grandes metrópoles e, caso mantenha a visibilidade, poderá credenciar-se como contraponto aos valores da velha política.
Lula, Serra e Marina, todos de origem modesta, terão um novo encontro marcado com o poder. Se faltarem ao compromisso, será por circunstâncias maiores que a sua vontade.
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*JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO