Governo por cotas 18/12/2010
- Mário Cesar Flores*
A formação da maioria de apoio aos governos federal e estaduais no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas, necessária à governabilidade tranquila, é um calcanhar de Aquiles do regime democrático instituído em 1988. Para construí-la os governos dependem de ene partidos, que podem complicar a governabilidade se não forem atendidos em suas pretensões de participação no poder.
A razão é simples: esse esquema viciado é facilitado pelo fato de que a construção da maioria se resume à barganha de cargos, não se estende à conciliação de divergências conceituais entre governos e partidos, que praticamente inexistem, ao menos com força consistente.
Os atores políticos da democracia brasileira distribuem-se em quase 30 partidos, ideológica, doutrinária e programaticamente semiamorfos - salvo num ou noutro tema tópico -, até porque é inviável a existência de tantas ideologias, doutrinas e programas, com concepções, objetivos, prioridades e metodologia distintos (evidentemente, não se trata aqui de distinções radicais à Marx ou Hayek, mas de variações intermediárias que tampouco podem existir às dezenas com autenticidade). Alguns são praticamente guarda-chuvas de legenda e para eles é natural que os programas sejam secundários ou irrelevantes. Mesmo os que se pretendem consistentes comumente ajustam a suposta consistência, em geral mais retórica do que efetiva realidade, aos conluios da conveniência conjuntural da participação na partilha do poder, condicionante do apoio à governabilidade.
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Em suma, nossos partidos são agrupamentos sem cuidados rigorosos quanto à coerência ideológico-programática. Partidos que, em vez de sistematizarem perspectivas, interesses e valores de setores da sociedade - o que é inerente à democracia -, sujeitando filiação e candidatura à concordância com suas ideias básicas, acolhem descompromissadamente quem possa carrear votos ou recursos com vista à ascensão ao poder e seu usufruto, nem sempre rigorosamente ético - comumente, o verdadeiro projeto partidário, hierarquizado acima das ideias, quando existem...
O funcionamento do sistema mais parece um jogo pautado pelo oportunismo conjuntural, em que valores de natureza programática e ideológica ou doutrinária pesam pouco, se tanto. A filiação do presidente da Fiesp ao Partido Socialista Brasileiro (nome de passado respeitável) e sua candidatura por esse partido são emblemáticas: ou o partido nada tem de socialista ou a Fiesp, órgão maior do capitalismo industrial brasileiro, era presidida por socialista...! Em cenário assim caracterizado, é compreensível a tendência à cooptação dos conluios da participação no poder.
O processo dessa cooptação tem ensejado situações e atuações nocivas à credibilidade da virtude da democracia, bem refletidas em manifestações desse jaez, publicadas à época, na mídia - "como aliado importante do governo, o senador xis precisa ter mais do que um carguinho na direção dos Correios..."- e, na reforma da administração de março de 2005, prócer de partido expressivo no apoio ao governo declarou que seu partido queria "coisa mais recheada" - demonstração explícita de que o apoio devia ter, por contrapartida, presença compensadora no poder; dada a expressão usada, presença de, no mínimo, discutível conteúdo ético.
Houve também, na mesma época, a afirmação de que bastaria o presidente dizer qual seria o Ministério alocado ao partido que, em 30 minutos (!), o partido diria o nome do ministro.
Insere-se nessa psicodélica montagem de sustentação da governabilidade a criação de Ministérios, inexpressivos e até mesmo sem sentido objetivo concreto, com justa razão menoscabados pela mídia e pelo povo (poucos brasileiros saberão o nome e as atribuições de boa parte dos 30 e tantos Ministérios). Criam-se Ministérios (com seus custos decorrentes) mais para atender aos partidos e políticos da coalizão governamental do que porque o País realmente precise deles!
As declarações de líderes partidários de que essa ou aquela escolha pessoal (do presidente ou governador) de correligionário seu para cargo de relevância no governo não seria da "cota do partido", e sim da "cota pessoal" do presidente ou governador, são consonantes com a lógica do butim-conluio fisiológico descomprometido com a competência objetiva, mas opostas à lógica presidencialista, que confere ao presidente (aos governadores) a responsabilidade pela escolha. O povo elegeu o presidente e o governador para governá-lo, não elegeu um governo por cotas: é, portanto, dele(s) a cota integral, embora possa(m) e deva(m) ouvir correntes políticas! O nível deprimente a que chegou esse problema no pós-eleição de 2010 descredibiliza nossa democracia, compromete o desempenho futuro do(s) governo(s) e é uma indicação de política de qualidade precária.
No cenário político atual é praticamente inexorável ser a construção do apoio congressual marcada pela cooptação - construção potencialmente comprometedora da condução política e administrativa porque vem sendo marcada mais pela surrealista distribuição de cargos pelo critério das cotas do que pela competência e pelo mérito avalizados pelo titular eleito, que não são requisitos fundamentais (na verdade, na dinâmica do processo, todos os possíveis postulantes partidários seriam ecleticamente aptos para quaisquer cargos...).
Vivemos à mercê de coalizões cuja segurança depende menos (ou nada...) da conciliação entre concepções díspares (improváveis, na homogeneidade do vazio ideológico e programático dos partidos) e mais do sucesso na disputa pela participação no poder. Vale repetir aqui frase recente de líder partidário, que exala fisiologia aética e reflete essa realidade: "... a gente vale quanto pesa..." (na sustentação da governabilidade). E o preço do "quanto pesa" tem de ser pago, por qualquer governo, enquanto mantida a sistemática política vigente.