Desmoralizando a cultura 18/12/2010
- Mauro Chaves*
É incompreensível que a classe artística e cultural brasileira ainda não se tenha mobilizado para lançar o lema "não somos ladrões". Ela ainda não percebeu que, afora os valores materiais roubados do contribuinte, a fraude que se descobriu no sistema de incentivos fiscais para produções artísticas e culturais criou uma desconfiança geral entre os patrocinadores sérios - aqueles que não pertencem à categoria de cupinchas instalados nas estatais, que dão mais valor às ligações pessoais que à qualidade artístico-cultural dos projetos.
Discutiram-se até demais as mudanças na Lei Rouanet, chegando-se a algumas alterações positivas e a outras negativas - assunto que aqui não cabe tratar. O problema é que o esforço exibido pelo Ministério da Cultura (MinC) no campo legislativo não se refletiu em sua fiscalização administrativa. No Ministério criou-se uma vergonhosa válvula de escoamento de recursos públicos, destinados ao patrocínio de projetos artísticos e culturais, para entidades fantasmas, falsos produtores culturais, laranjas de todo gênero, empresas inexistentes - tendo como sede vidraçarias ou residências de humildes e enganados laranjas - e aberrações semelhantes.
Além da corrupção interna, o governo tinha indícios, mas deixou que prosperasse um festival de falcatruas praticadas por parlamentares federais, tendo como pretexto as verbas do Orçamento destinadas ao "fomento a projetos de arte e cultura". A previsão de gastos com a cultura e a arte no Brasil, que no Orçamento de 2010 era de R$ 116,9 milhões, passou para R$ 391,5 milhões - aumento, portanto, de 235%, graças a 258 emendas parlamentares. Na verdade, muito foi alardeado esse aumento, levando a crer que se passava a dar maior valor ao que representa a melhor expressão do talento brasileiro. Tais recursos públicos, no entanto, foram jogados fora ou roubados por meio de empresas de fachada.
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Outros escândalos podem ter implicado valores muito maiores, mas este é muito mais deletério para a sociedade brasileira, pela insegurança que causa a empresas que se dispõem a dar sua importante colaboração ao desenvolvimento artístico e cultural da população, incentivando-a tanto à produção quanto ao consumo de cultura e arte em nosso país.
Quantos espetáculos de qualidade poderiam ter sido levados às periferias das grande cidades e a lugares carentes e quantos grupos de jovens talentosos poderiam obter o importantíssimo apoio com uma pequena parte dessa verba surrupiada? É que se descobriu na cultura uma nova fronteira para a corrupção - propícia à prática de fraudes, falsificação de documentos, recebimento e pagamento de propinas, tráfico de influência, formação de quadrilha e muitos outros crimes praticados na administração pública e por delinquentes com ela mancomunados. É aberrante, por outro lado, que a aceleração ou o retardamento dos projetos culturais que se iriam beneficiar dos incentivos fiscais da Lei Rouanet tenham dependido do pagamento de subornos. O que se julgava serem apenas entraves da burocracia eram, na verdade, atrasos nas operações de roubalheira.
Também se está desmoralizando a cultura e a arte brasileiras por motivo bem diferente. Para escolher o que concorrerá ao Oscar de melhor filme estrangeiro e demonstrar seu espírito "democrático" o MinC abriu uma enquete em seu site. A votação deu em primeiro lugar o filme Nosso Lar, com 88.894 votos, correspondendo a 70% das preferências; em segundo, Chico Xavier, com 14.881 votos, correspondendo a 12%; em terceiro, Os Famosos e os Duendes da Morte, com 10.437 votos ou 8%; em quarto, O Grão, com 2. 431 votos, ou 2%; em quinto, Antes que o Mundo Acabe, com 2.035 votos, ou 2%; e em sexto, Lula, o Filho do Brasil, com 1.646 votos, isto é, apenas 1% da preferência do público.
Adivinhem, agora, qual foi o escolhido? O que recebeu apenas 1% dos votos! Um filme medíocre, que em relação a seus custo e pretensões se tornou um retumbante fracasso, de público e crítica. Tantos filmes excelentes foram produzidos, marcando uma fase de grande evolução da cinematografia brasileira, os quais nos poderiam representar por suas notórias qualidades, mas deu-se preferência a uma obra político-bajulatória sem nenhuma inovação técnica ou artística, sem criatividade - enfim, um abacaxi embrulhado em papel dourado que não conseguiu engabelar o público. O MinC traiu completamente o espírito "democrático" que pretendeu exibir, na escolha. E na justificativa dessa escolha alegou que "Lula é uma estrela daqui e fora daqui, internacionalmente conhecida". Essa explicação é até ofensiva a um criador de arte, pois o prestígio da personagem nada tem que ver com a qualidade de uma obra. Esta deve ser avaliada por seus próprios méritos, pois um filme ruim sobre personagem importante é pior para seu criador do que uma obra fraca sobre desconhecidos.
Mas vejamos um exemplo da opinião internacional sobre o filme: a crítica do jornal argentino La Nación escreveu que "a incrível história de vida de Lula da Silva merecia um filme melhor, mais interessante e mais profundo do que Lula, el Hijo del Brasil". Ela também afirmou que, no filme, "cada episódio da vida do presidente do Brasil é mostrado como se fosse um manual de História escrito por seu biógrafo oficial", o que o torna "limitado e superficial". Outras críticas nacionais e internacionais estão no mesmo tom, correspondendo, exatamente, à frieza com que o público recebeu o filme, mesmo que se tenham inventado formas inéditas de exibi-lo em lugares improvisados em todo o território nacional - afora o grande circuito de cinemas em que passou.
A classe artística e cultural brasileira é uma que se tem mobilizado muito não só em defesa de seus próprios direitos, como categoria profissional, mas também pela sensibilidade ante problemas que dizem respeito à cidadania. Então, contra a corrupção e a politicagem que invadiram a arte e a cultura em nosso país, onde está a mobilização de nossos verdadeiros intelectuais e artistas?
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*JORNALISTA, ADVOGADO, ESCRITOR, ADMINISTRADOR DE EMPRESAS E PINTOR. E-MAIL: MAURO.CHAVES@ATTGLOBAL.NET