A matança de Tucson 11/01/2011
- O Estado de S.Paulo
Em toda parte sempre haverá fanáticos ou psicopatas dispostos a eliminar figuras públicas que abominem. Mais ainda quando a política do ódio intoxica o debate nacional e a leniência das leis sobre o acesso a armas de fogo é um convite à brutalidade - uma coisa e outra fatos notórios nos Estados Unidos. Ao longo da história americana, a violência política fez vítimas incontáveis, de presidentes e líderes civis, como Lincoln, Kennedy e Martin Luther King, a cidadãos comuns como as 168 pessoas mortas por um terrorista de extrema direita na explosão de Oklahoma City em 1995.
A irrupção de Barack Obama na cena do país, embora acendesse a esperança e o orgulho na maioria da população, provocou nos redutos ultramontanos da sociedade, incentivados pela estridente mídia conservadora, sentimentos de aversão que mal disfarçavam as suas raízes racistas. As políticas do novo presidente, como a intervenção do Estado para socorrer a economia em frangalhos, e o cumprimento de sua promessa de mandar para o Congresso um vasto projeto de reforma do sistema de saúde foram estigmatizados como passos para a implantação insidiosa do socialismo nos EUA, com o apoio dos "liberais" - o Partido Democrata e os setores progressistas das elites intelectuais.
Adensando o clima de aberta hostilidade ao governo, propagou-se a calúnia de que Obama investia contra os valores essenciais da nação porque ele não só é um estrangeiro que forjou a sua cidadania, mas, ainda pior, um muçulmano enrustido. Segundo uma estimativa, passaram a chegar à Casa Branca, em média, 30 ameaças diárias de morte dirigidas ao presidente - 4 vezes mais do que no governo George W. Bush. Ao mesmo tempo, o que parecia ser uma expressão marginal da política americana - o agressivo movimento contra o ativismo estatal e o sistema de impostos, chamado Tea Party - transformou-se numa força poderosa, com forte influência sobre o Partido Republicano.
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Liderado pela ex-governadora do Alasca Sarah Palin, candidata da legenda à vice-presidente em 2008, o Tea Party iniciou uma cruzada contra os candidatos "esquerdistas" ao Capitólio, nas eleições de meio de mandato de setembro último. Na internet, 20 deles apareciam por trás das linhas cruzadas da mira de uma arma. "Estamos na lista dos alvos de Sarah", disse em março a deputada democrata Gabrielle Giffords, 40 anos, que disputava a segunda reeleição pelo Arizona. "Pessoas que agem assim têm de saber que isso gera consequências." Na manhã de sábado, diante de um supermercado nas proximidades de Tucson, Gabrielle foi alvejada na cabeça. A sua situação é crítica. O atirador, Jared Lee Loughner, de 22 anos, premeditou o atentado.
Os 31 disparos de sua pistola, adquirida numa loja de artigos de caça e pesca, feriram 14 pessoas e mataram outras 6 - entre elas um juiz federal, uma criança e três septuagenários - antes que o assassino fosse subjugado. A amarga ironia é que o crime foi perpetrado no lugar onde Gabrielle realizava periodicamente o evento "O Congresso na sua esquina" - uma reunião com eleitores, típica dos contatos face a face entre mandatários e cidadãos que a política americana tem de mais autêntico. Gabrielle encarnava também o pensamento que provoca fantasias homicidas no pessoal do Tea Party. Defensora aguerrida do programa de saúde de Obama, condenava com igual vigor a draconiana lei de imigração do Arizona, que autoriza a prisão (e deportação) dos sem-documentos.
A matança de Tucson tirou o chão sob os pés dos republicanos, que assumiram na semana passada o controle da Câmara dos Representantes e pretendiam pôr em votação amanhã um projeto, de escasso efeito prático, revogando a reforma da saúde. A iniciativa, o primeiro lance de um movimento para acuar o governo Obama, foi suspensa. Desconcertadas, as lideranças republicanas correram a deplorar a chacina. Sarah Palin, de seu lado, apressou-se a negar que a sua pregação pudesse ter armado o braço do criminoso. Pela enésima vez, os americanos são obrigados a se defrontar com um surto de violência nos seus embates políticos.