O mundo da ciência está em polvorosa. Daryl J. Bem, professor emérito de psicologia social da prestigiosa Universidade Cornell, escreveu um artigo no qual alega apresentar evidencias fortes em favor da Percepção Extrassensorial (PES), ou seja, a capacidade de pressentir o futuro. Pior, o "paper" foi aceito para publicação pelo "Journal of Personality and Social Psychology", que tem revisão por pares e se conta entre os principais periódicos dos EUA nessa área.
Como não poderia deixar de ser, a notícia está fazendo barulho. Uma cópia do artigo circula pela internet e, antes mesmo de ele ser oficialmente publicado, já provoca acalorada polêmica, que pode ser acompanhada nas páginas de opinião do jornal "The New York Times" e na blogsfera científica e parapsicológica.
A comunidade acadêmica mais, digamos, ortodoxa se divide em dois grandes blocos: o dos que estão se divertindo com a história e o dos que estão indignados com ela. Em termos práticos, debate-se se o "journal" deveria ou não ter aceitado o artigo. O interessante, porém, são as possibilidades de discussão teórica que o imbroglio proporciona.
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Muitos aproveitam a ocasião para falar mal do sistema de publicações científicas, outros criticam o uso da estatística que fazem certos departamentos das universidades americanas --notadamente que guardam parentesco com as ciências humanas, como a psicologia social. Há ainda quem prefira lançar-se em debates sobre a natureza da física ou sobre a epistemologia. Alguns chegaram mesmo a especular se tudo não passa de uma elaborada brincadeira do professor Bem, que já passou por Stanford, Harvard e goza de sólida reputação acadêmica.
Diga-se em favor do autor que seu "paper" é bastante honesto. Ele está ciente do vespeiro em que se meteu e convida outros pesquisadores a replicar seus experimentos. Não pretende oferecer interpretações acabadas. Todas as ideias que ele apresenta para explicar seus achados são apresentadas como hipóteses ainda no terreno da especulação.
A essa altura, o leitor deve estar se perguntando que diabos Bem achou. Na verdade, o artigo descreve nove experimentos distintos que ele realizou ao longo da última década. Seria exaustivo e ocioso repassá-los todos aqui, mas eles consistem basicamente em pôr 1.100 estudantes universitários para adivinhar o futuro, consubstanciado em tarefas como predizer se uma fotografia vai aparecer do lado esquerdo ou direito da tela do computador ou pressentir onde encontrar a próxima imagem erótica.
Em todas menos uma dessas adivinhações, sustenta o psicólogo, os alunos se saíram um pouco melhor do que o autorizado pelo mero acaso. No experimento mais picante, os jovens acertaram onde estavam as fotos sensuais 53% das vezes, contra 49,8% dos controles (imagens não eróticas). Haveria aqui, portanto, significância estatística, o que nos colocaria diante da famosa PES, adorada por roteiristas de cinema e, na mesma medida, abominada por cientistas, em especial os psicólogos. Mais ainda, se a PES é uma realidade, então o futuro afeta o presente (retrocausalidade), o que torna urgente modificar todos os livros de física, segundo os quais o tempo é linear.
Apesar dos cuidados tomados, nem Bem nem o "journal" escaparam às críticas. Os mais simpáticos ao autor, embora elogiem a iniciativa em nome da liberdade de pesquisa que deve caracterizar a ciência, são bastante céticos quanto a seus resultados. Não veem mal na publicação porque os resultados não serão reproduzidos em outros centros, de modo modo que a excentricidade de Bem não chegará a entrar para os anais da ciência. Por enquanto, três tentativas de replicar os experimentos fracassaram. Há outras em curso.
Vale aqui mencionar que o próprio periódico vai editar, na mesma edição do artigo favorável à PES, uma crítica severa a ele, escrita por estudiosos da Universidade de Amsterdã, na qual eles fazem restrições à metodologia estatística empregada por Bem. Para os holandeses, o professor emérito errou ao tratar os dados colhidos de forma exploratória com um instrumental concebido apenas para confirmar hipóteses. Ao fazê-lo, ele inadvertidamente superestimou as evidências estatísticas contrárias à hipótese de que o fenômeno não existe. Eles recalcularam os dados de Bem valendo-se de outras ferramentas (inferência bayesiana) para concluir que não têm significância.
O mundo, porém, não é composto apenas de pessoas tolerantes e gentis. Alguns dos que se meteram nessa polêmica reservam termos fortes para qualificar a pesquisa. "Loucura" e "assalto à razão" são alguns dos publicáveis. Há aqui, é claro, várias linhas de argumentação. De um modo geral, porém, elas sustentam que, como a existência de PES é uma tese extraordinária, só poderia ser publicada num "journal" se fosse sustentada por evidências extraordinárias, o que não é o caso mesmo se as conclusões de Bem fossem aceitas pacificamente.
Quem coloca o problema de forma veemente na página de debates do "Times" é Douglas Hofstadter, professor de ciência cognitiva da universidade de Indiana: "Se algo disso [a PES] fosse verdade, então todas as bases da ciência contemporânea ruiriam, e nós teríamos de repensar a natureza do universo. Por essa razão, publicar um artigo como esse é um ato muito grave e o fato de ter ocorrido revela que os editores provavelmente não compreenderam as implicações do texto".
É claro que Bem discorda. Ele termina seu artigo arriscando hipóteses para explicar suas conclusões sem recorrer a espíritos ou inteligências cósmicas. Infelizmente, apela a algo parecido, que é a mecânica quântica. Meu palpite é que, sempre que alguém vai buscar nos quanta justificativas para efeitos mirabolantes no mundo macroscópico, temos razões para desconfiar. Não porque tais efeitos sejam impossibilidades físicas, mas, pelo que sabemos, estão limitados ao universo dos átomos e suas partículas. Antes de recorrer a esse tipo de explicação, é prudente coletar novos dados e refazer as contas. E isso, aparentemente, Bem não fez.
É o mesmo raciocínio que se aplica à navalha de Occam. Não existe uma lei da física que impeça um dado fenômeno de ser provocado por uma miríade de causas complexas. Mas, conhecedores que somos da fértil imaginação humana -- e de sua obsessão por encontrar padrões onde eles não existem --, devemos ficar com as barbas de molho e, antes de criar hipóteses muito complicadas, descartar as mais simples.
O bonito nessa confusão toda é que ela mostra a ciência em ação. Ainda que de forma um pouco atabalhoada, uma hipótese extravagante foi levantada e debatida. Está sendo testada e quase certamente será rejeitada. A liberdade de pesquisa foi preservada. Se despirmos a novela de seus exageros retóricos, o que se discute é se o primeiro filtro deveria ter sido o "journal" ou a comunidade acadêmica, através dos testes da replicação e do exame crítico. É claro que não é um sistema perfeito. Muito lixo é publicado (o ramo científico, afinal, virou uma indústria) sem objeções ou reparos porque são trabalhos anódinos que, por não trazerem conclusões polêmicas, passam quase despercebidos.
Vale concluir com a observação de que ainda precisamos avançar muito na promoção da cultura científica, a fim de oferecer ao cidadão ferramentas mais adequadas para ler e compreender uma notícia sobre ciência. Como observa Steven Pinker, hoje, nos meios universitários, é considerado aceitável (quase engraçado) que um intelectual se vanglorie de ter passado raspando em física e de ignorar o beabá da estatística. Mas ai de quem admitir nunca ter lido Joyce ou dizer que não gosta de Mozart. Sobre ele cairão olhares tão recriminadores quanto sobre o sujeito que assoa o nariz na manga.
Joyce e Mozart podem ser ótimos, mas eles, como quase toda a cultura humanística, têm pouca relevância para nossa vida prática. Já a cultura científica, que tratamos quase com desprezo, vai se tornando cada vez mais fundamental para que possamos nos posicionar em relação a políticas públicas e tomar decisões que afetam nossa saúde e bem-estar.
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*Hélio Schwartsman, bacharel em filosofia, é articulista da Folha de S.Paulo