O abuso dos recalls 01/02/2011
- O Estado de S.Paulo
Já se tornou rotineiro o anúncio de montadoras convocando seus clientes para o recall de determinados modelos de automóveis, utilitários e caminhões, por defeitos mecânicos que são às vezes de tal ordem que colocam em risco a vida dos motoristas. No Brasil, apenas neste início de ano, foram noticiados recalls da Ford, da Toyota e da Peugeot, mas a prática se estende a todo o espectro de marcas da indústria automobilística. Segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, o número de recalls no País bateu um recorde em 2010, atingindo 64, um crescimento de 65% em relação ao ano anterior (39), envolvendo 1,5 milhão de veículos, entre os quais carros importados de luxo.
O fato é que a convocação pelas montadoras para conserto por defeitos de fabricação, tida como uma forma de proteção ao consumidor, nada mais é que uma tentativa de mascarar um abuso, que é a falta de consideração das empresas pela integridade física de seus clientes.
Quando, por exemplo, uma pessoa pretende comprar um carro usado, a primeira providência que toma, com o assentimento do vendedor, é levar o veículo a uma oficina de sua confiança para poder avaliar o estado em que se encontra e consertar defeitos ou avarias acaso existentes. Ora, quando alguém adquire um veículo novo, parte da presunção de que ele se encontra em perfeitas condições de uso com segurança. Ocorre, porém, que as montadoras colocam veículos à venda sem maiores cuidados e, se julgarem conveniente, fazem um recall.
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A convocação para a troca de peças defeituosas ou para reparos só é feita depois de as reclamações terem atingido um número considerável ou quando são muito fortes as pressões dos órgãos de defesa do consumidor. Os serviços devem ser agendados com revendedoras autorizadas, o que deve ser feito com muita antecedência, demorando às vezes mais de um mês. Isso quando o consumidor toma conhecimento da convocação para resolver o problema de seu veículo e se dispõe a comparecer. Dos 7,5 milhões de proprietários de veículos convocados pelas montadoras para reparos no Brasil, entre 2000 e 2010, 60% não atenderam ao chamado, segundo técnicos do setor de transporte. Calcula-se que, com isso, as montadoras "economizaram" US$ 150 milhões.
Depois de decorrido o prazo de garantia dos veículos, quando surge uma falha, mesmo sendo devida a defeito de fabricação, o conserto, que não é coberto por seguro, corre por conta do consumidor, isto é, se ele não tiver sido ainda vítima de um acidente fatal.
Não é à toa que muitos proprietários de automóveis reclamam contra a obrigatoriedade de uso de "peças originais" - alegadamente sujeitas a rigorosos controles de qualidade - durante os períodos de garantia. Seja por poupança de custos, seja pela pressa em atender a uma demanda em crescimento, é lícito duvidar, dado o número crescente de recalls, que haja um controle de qualidade efetivo das peças e sistemas usados originalmente nos veículos.
Pode-se alegar que os recalls prejudicam a imagem das montadoras. De fato, isso pode ocorrer em casos extremos, como o da Toyota. Depois do mega-recall da Toyota de 8,5 milhões de veículos em 2009/2010, a montadora japonesa anunciou há pouco uma nova chamada para conserto de 1,7 milhão de carros, comercializados no Japão e em outros países, incluindo o Brasil. Naturalmente, essa recorrência desgastará a imagem da companhia e já teve impacto negativo sobre a cotação de suas ações - sem falar nas despesas com indenizações e prêmios de seguros.
Apesar disso, um dos porta-vozes da companhia justificou o último recall como "medida de precaução", de acordo com a estratégia de bem servir aos usuários de seus automóveis. Vê-se, portanto, que, em vez de um mea-culpa explícito pelos problemas que causou, a montadora, como outras congêneres em todo o mundo, procura utilizar o recall como instrumento de marketing. Esta inversão de valores é absolutamente inaceitável.