Uma declaração aparentemente frugal do futebolista Ronaldo Luís Nazário de Lima, que anunciou sua aposentadoria este mês, diz mais sobre as crenças do nosso tempo do que uma biblioteca inteira de antropologia americana. Normalmente, os pronunciamentos dos praticantes profissionais de futebol não revelam coisa alguma; reduzem-se à fórmula "nossa equipe está bem, graças a Deus, tática, física, técnica e psicologicamente, vamos respeitar o adversário e, se Deus quiser, o empate já está bom". Com pequenas e raras exceções, aí dentro cabem todas as palavras de todos os craques brasileiros de todos os tempos. Mas, na entrevista coletiva que concedeu no dia 14 de fevereiro, Ronaldo nos trouxe uma exceção. "Perdi para o meu corpo", ele disse. Não vai mais jogar bola. A frase merece atenção.
A trajetória esportiva desse atleta de talento perturbador, chamado de "Fenômeno", é a história de superações físicas inacreditáveis. Ele sofreu fraturas e lesões gravíssimas e, contrariando previsões abalizadas, voltou a brilhar nos estádios, para alegria dos torcedores e até mesmo de espectadores exóticos, que não compreendem a aura dessa modalidade desportiva baseada em chutes e cabeçadas. Uma cena ficou na lembrança de todo mundo: a expressão de dor lancinante de Ronaldo, sentado à frente da grande área, com as mãos sobre o joelho, talvez tenha sido uma das imagens mais marcantes na memória recente dos apreciadores do futebol e também dos curiosos ocasionais. Foi um momento de silêncio sólido, espontâneo, de imensa apreensão. O craque, como que abatido em pleno voo, parecia condenado. Nos meses seguintes, no entanto, ele deu a volta por cima, como se diz - ou, para lembrarmos sua frase mais recente, venceu seus ossos e seus músculos lesionados.
Antes, nos duelos entre Ronaldo e o corpo de Ronaldo, o primeiro alcançava a vitória. Claro que respeitava o adversário - a saber, seu próprio corpo -, mas dava conta de derrotá-lo. Agora, no entanto, quem sofre a derrota é ele, Ronaldo. O que isso quer dizer, exatamente?
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Podemos começar pelos chavões: querer é poder, por exemplo. Eis um bom chavão. "Yes, we can", dizia a campanha de Obama. "Keep walking", reza o rótulo do uísque. A ideia de "vencer" os limites corporais é uma crença endêmica da nossa era. Os melodramas de superação fazem sucesso na televisão e no cinema, assim como na publicidade. Há poucos anos, uma marca de cigarro tinha um slogan bem sugestivo: "No limits." Ou seja: fume, não aceite restrições, entregue-se ao que você entende como desejo, aspire seu prazer, derrube os obstáculos morais e físicos.
Neste plano, notoriamente superficial e acachapante, o discurso publicitário se assemelha às falas dos zagueiros no intervalo do jogo: a gente vai vencer e ser feliz pra chuchu com a taça na mão. Para ser feliz, portanto, é preciso competir, vencer e pôr a mão na coisa. Competir para ser feliz é bater-se contra o adversário e contra os limites do próprio corpo. Ser feliz, enfim, segundo esse sistema de crenças, é fazer com que o desejo triunfe sobre a matéria corporal e sobre todos os outros humanos que são contra o que desejamos. Tanto é assim que esses lugares comuns, que dão base para as novelas de TV e para campanhas de publicidade, orientam a biografia de seres humanos de carne e osso, em luta permanente contra sua carne e seus ossos.
Então é isso? Não, não é só isso. Há uma problema nessa lógica, um problema nada corriqueiro. Se sairmos do plano superficial e acachapante, veremos que o desejo - já que falamos dele - não é bem um sinônimo de força de vontade. É, aliás, o seu oposto. O desejo não brota da alma para disciplinar o corpo. Ao contrário, ele se enraíza nas pulsões do organismo, cujas secreções são todas físicas, materiais. O desejo nasce do corpo, compete contra o corpo e, se por acaso entra em rota de desgoverno, mata o corpo. Não fosse assim, ninguém morreria de vício. Daí, quando alguém diz que perdeu o combate para o próprio corpo, é difícil saber se perdeu por não ter sabido impor ao corpo a sua vontade - ou se perdeu por ter cedido em demasia aos desejos que brotaram do corpo (e aqui, nesse plano, é possível diferenciar vontade de desejo).
Podemos perder para o corpo quando ele não nos obedece mais - ou seja, não obedece à nossa vontade, àquela deliberação racional que adotamos e que queremos fazer valer com persistência e determinação. Mas também podemos perder para o corpo quando cedemos a todos os caprichos que ele nos impõe, quando a nossa razão, se é que ela existe, perde autonomia para a nossa carne (que não é fraca, de modo nenhum; é fortíssima).
Isso posto, onde é mesmo que está a derrota anunciada por Ronaldo? Estará ela no esmorecimento da disciplina ou no esmorecimento do corpo? Se estiver no esmorecimento da disciplina, sua derrota não terá sido para o joelho ou para a tireoide, mas para os prazeres que o corpo lhe cobrou, prazeres que minaram sua força de vontade. Se estiver no esmorecimento do corpo, sua derrota terá sido a fadiga do material: não dá mais e ponto. O mais provável - e o mais fascinante, neste caso - é que as duas vias de explicação estão certas.
Por uma via ou por outra, a civilização em que existimos tem este traço particular, o de fazer com que o sujeito olhe para o seu próprio corpo como se ele fosse um objeto externo, administrável. O executivo, olhando para o gráfico de colesterol de seus exames de sangue periódicos, crê que pode gerenciar seu corpo como administra o caixa de sua empresa. A mulher contrata o cirurgião para esculpir seu colo a golpes de bisturi. Viver é combater o corpo, inutilmente. No final, é ele quem vencerá, mesmo morto. Quando tudo acabar, o que carregarão de nós não será outra coisa senão o corpo vencedor.