Copa de 2014: crônica do mico anunciado 02/03/2011
- José Nêumanne*
O Campeonato Mundial de Futebol, organizado a cada quatro anos pela Fifa, entidade privada com sede na Suíça, é um negócio arquibilionário para quem vive em torno de futebol: jogadores, técnicos, dirigentes, preparadores físicos e outros profissionais do ramo; acionistas, redatores, narradores e comentaristas de imprensa, rádio e televisão; e, sobretudo, os maiorais da entidade organizadora e seus afilhados pelo mundo.
Estes inventam a cada torneio novas regras que tornam necessárias obras civis que exigem grandes investimentos: dos estádios à infraestrutura de transportes urbanos e aéreos, além da adaptação da rede hoteleira para atender à demanda de público aos jogos.
Países que dispõem de caixa para cobrir as deficiências de estações metroviárias, aeroportos, vias públicas e outras instalações físicas necessitadas de reforma para abrigar hordas de aficionados por futebol lutam para sediar espetáculos transmitidos pela televisão para plateias de bilhões.
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Esse tipo de investimento importa divisas para a sede do torneio quadrienal e também gera impostos que ajudam a engordar o erário, o que poderia, se aplicados com decência e critério, melhorar os serviços públicos, sobretudo em áreas essenciais e carentes, como saúde, educação e segurança pública.
Em relação a isso, há três controvérsias. A primeira é que nunca sede alguma de uma Copa do Mundo trouxe a lume um relato confiável dos lucros auferidos ao longo do evento. A segunda é que mais arrecadação nem sempre (ou quase nunca?) representa melhora de atendimento em hospitais, aprimoramento da educação, especialmente a básica, nem redução significativa de índices de violência. Se isso foi medido, está mantido sob rigoroso sigilo. E, no caso do Brasil, que aceitou a condição de isentar os beneficiados de impostos, este segundo efeito será nulo.
Este país sediará a Copa de 2014 daqui a três anos e quatro meses. Um ano antes, como ocorre sazonalmente, será testada parte dos equipamentos para os grandes espetáculos num acontecimento de grande repercussão, mas menor alcance do que o Mundial propriamente dito, a Copa das Confederações.
Neste momento, estamos no segundo estágio, no qual governantes começam a assumir compromissos que, de início, renegaram. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ex-governador de São Paulo Alberto Goldman (PSDB) e o prefeito Gilberto Kassab (ainda DEM) juraram de pés juntos que nenhum centavo de dinheiro público seria usado na construção de algum estádio para o torneio.
Os juramentos, feitos e reiterados, já começaram a ser sutilmente abjurados. Lula e Goldman saíram de cena, substituídos por Dilma Rousseff e Geraldo Alckmin. Quem deu o pontapé inicial, não na pelota, mas no traseiro do contribuinte, foi o remanescente do trio, Kassab, sob cuja gestão se anunciou que está em estudos um projeto ardiloso de socorrer o Corinthians na construção de seu estádio em Itaquera para que sirva de palco para a abertura do campeonato. Ao lado de Alckmin, ele ouviu Dilma garantir sexta-feira passada que, sim, o primeiro jogo será no estádio do qual não se conhece sequer projeto de viabilidade.
O trio multipartidário passou por cima de algumas evidências da lógica elementar: nada garante que São Paulo terá mais benefícios do que custos sediando a Copa; a cidade tem estádios demais para atender o Mundial e a agenda futebolística local; e o favorecimento de um clube específico - em detrimento de seus adversários - é acintoso. A excelente drenagem do Morumbi no clássico de domingo deixou claro que o estádio pode ser reformado com relativa facilidade para cumprir as exigências de que a Fifa e sua representante no Brasil (a CBF de Ricardo Teixeira) não abrem mão. Até o Pacaembu, que a Prefeitura por pouco não cedeu em comodato ao mesmo Corinthians, agora beneficiado, e a Arena Palestra Itália, que o Palmeiras está reconstruindo às suas expensas, têm sobre o Piritubão uma vantagem essencial: eles existem. A opção anunciada por Dilma, Alckmin e Kassab de que o jogo inicial será disputado na zona leste equivale à decisão de um diretor de cinema que, precisando de um bebê, incentiva o flerte de um casal para contratar o filho que será gerado, antes sequer de ter início o namoro dos pais. Se vivos fossem, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino teriam de recorrer ao Procon para salvar a honra da lógica que descreveram.
O aval da presidente, do governador do Estado e do prefeito de São Paulo à decisão monocrática de Ricardo Teixeira, presidente da CBF e rei do comitê organizador da Copa no Brasil, só se explica por interesses eleiçoeiros. O Mundial será disputado em ano de eleições e disso querem tirar proveito. Mas, como os três deverão estar em campos políticos opostos nas eleições para governador e presidente em quatro anos e terão de dividir a gratidão do eleitorado (nem sempre tão grato assim) no vale-tudo do marketing eleitoral, pouco importará quem goze da regalia. Importa é que o cidadão pagará as despesas. A conversa fiada de que o contribuinte não bancará o banquete em que se refestelarão os barões do marketing esportivo, dos meios eletrônicos de comunicação de massas e da burocracia federal não o livrará de arcar com o prejuízo, mesmo expulso das arquibancadas pelo alto custo dos ingressos. Relatório insuspeito do Tribunal de Contas da União expõe a carta que os dirigentes da República e dos esportes pretendiam manter escondida na manga: dos R$ 23 bilhões a serem gastos em obras, só R$ 336 milhões ficarão por conta do setor privado, restando 98,5% para o cidadão deixado de fora financiar.
Pelo andar da carruagem, não há garantia de que a Copa de 2014 será disputada neste país sem estádios, aeroportos, vias públicas, hotéis e outros equipamentos exigidos pelos organizadores. Em vez de fazerem o jogo da "cartolagem" só por demagogia barata, Dilma, Alckmin e Kassab seriam mais espertos se saíssem de fininho e devolvessem o mico anunciado à Fifa e à CBF, seus legítimos criadores.
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*JORNALISTA, ESCRITOR E EDITORIALISTA DO "JORNAL DA TARDE"