Armar ou desarmar é só mais uma questão 15/04/2011
- Fernando Gabeira*
Armar, desarmar, amar, desamar. O assassinato dos adolescentes em Realengo acionou inúmeras discussões adormecidas. Desde o princípio tive uma atitude pedestre diante dela, baseado na frase de Guimarães Rosa: quem mói no áspero não fantasia. A única pressa que se justificava diante do fato consumado era, no meu entender, discutir a pressa de prestar socorros. Quanto tempo é possível abreviar para que a polícia chegue ao lugar onde acontecem fatos como os de Realengo? Não seria interessante, pelo menos, colocar um alarme nas escolas e dotar todos as viaturas públicas de GPS? Mas o curso das discussões nos levou para outro lado. As interpretações psicológicas eram inevitáveis e, por mais delirante que pareçam, acabam contribuindo como uma forma de elaborar a dor.
Mas houve muita gente que desprezou qualquer raciocínio tático, qualquer busca tecnológica, argumentando que o problema são as relações entre as pessoas, mais amor, tolerância com as diferenças - enfim, todo um programa para uma sociedade harmônica que levará muito tempo a ser alcançada.
Os políticos são mais rápidos no gatilho. A ideia de reviver o plebiscito sobre a venda de armas é uma resposta direta que parece dar a cada um a tarefa de impedir que isso aconteça de novo, marcando o voto sim para proibir o comércio legal.
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Não houve nenhuma reflexão sobre o plebiscito de 2005, em que a maioria, 64%, votou pelo direito de comprar armas. O raciocínio único é este: com o impacto emocional do massacre em Realengo, a opinião pública mudará sua opinião. A favor desse argumento se pode mencionar o caso da Escócia. Depois de um assassinato desse tipo, foi possível caminhar para a proibição da venda de armas no país. Mas as coisas aqui são diferentes.
Todos se lembram de que no plebiscito de 2005 a tese da proibição tinha maioria no Congresso e era esposada também pela imprensa e pela TV, com raras exceções. Estatísticas mostrando que usar armas era mais perigoso do que não usar foram apresentadas com insistência. Grande parte das armas que os bandidos portam foi tomada de pessoas de bem, já se dizia na época.
Mas, ainda assim, a maioria votou não. O que determinava sua posição era o medo de não poder comprar armas, cercada de bandidos fortemente armados. Esse medo não conseguimos alterar substancialmente no Brasil. Como esperar mudanças num novo plebiscito, contando apenas com o impacto emocional de Realengo? Fatos emocionais, sozinhos, são um bumerangue. Se Wellington tivesse sobrevivido, o grande debate hoje seria um plebiscito sobre a pena de morte.
Setores do governo abraçaram rapidamente a causa, porque, colocada nessa dimensão, ela obscurece o fracasso de nossa política de controle de armas ilegais. Numa viagem a Cali, documentei batidas para recolher armas em vários pontos da cidade. Funcionavam e ainda sinalizavam para futuros infratores que era difícil circular com armas ilegais em Cali.
Nada disso é feito no Brasil. Não temos nenhum esquema especial de controle nas estradas nem avançamos nos entendimentos diplomáticos com EUA e Paraguai com o objetivo de controlar, eventualmente, a vinda de armas desses países. Os EUA, como centro de venda, e o Paraguai, como plataforma de reinserção de armas compradas no Brasil, podem contribuir muito para nossos objetivos.
Em vez de apresentar um plano crescente de combate às armas ilegais, um calendário em que se possam observar os avanços, conjugação com queda dos índices de criminalidade, o Brasil volta ao tema de 2005 apenas com o pavor do crime de Realengo nas mãos.
A maioria do povo brasileiro não aplica derrotas como a do plebiscito de 2005 apenas por aplicar. Ela nos transmite ensinamentos. Não se pode comparar sua atitude mecanicamente com a americana. Aqui, 64% optaram pelo direito de comprar armas, mas não necessariamente as compraram: no Brasil há 16 milhões de armas, ante 270 milhões nos EUA.
Tenho medo de esse debate resvalar para a aspereza das discussões de 2005 no Congresso e ofuscar nossas propostas, como a de analisar minuciosamente e com calma o crime de Realengo. Numa análise desse tipo, concluiremos que a chegada da polícia ao colégio foi acidental. Precisamos calcular quanto tempo levaria o socorro em circunstâncias normais, o que fazer para encurtar esse tempo. Wellington ainda tinha 66 balas quando morreu. Isso também é assustador.
Outro aspecto que pode ser ofuscado é o debate sobre a segurança nas escolas. Alguns intelectuais apostam apenas na convivência tolerante e amorosa. Acontece que o mundo mudou. É o que experimento no Rio, nestes anos em que discutimos as escolas em áreas vulneráveis. Desastre naturais, bandidos em fuga desesperada, balas perdidas, tráfico de drogas e agora a síndrome de Amok, como chamam no exterior essa fúria assassina, são muitos os fatores que indicam a necessidade de uma reavaliação.
Um professor que escapou na Escola Tasso da Silveira teve de pedir emprestado o telefone celular para pedir socorro. Isso não seria necessário em escolas preparadas para algumas emergências.
Desde o princípio do debate, firmou-se a tese de que o atentado em Realengo era inevitável. Tese correta, considerando que em muitos outros países, com esquemas mais sofisticados de segurança, isso também aconteceu. Mas tanto a tese da inevitabilidade como a proposta oportunista do plebiscito não podem inibir aqueles que querem lutar contra o inevitável, por caminhos modestos e práticos. A morte também é inevitável e todos os dias trabalhamos para prolongar a vida.
Será preciso esperar que as coisas se acalmem para nos sentarmos e começarmos a perguntar coisas mais simples. Uma delas diz respeito ao governo: se o Estatuto do Desarmamento não é aplicado com rigor e imaginação, como esperar saída em mais um plebiscito? Derrotado em 2005, troco agora o lugar de Quixote pelo de Sancho Pança, para advertir, como ele: olhe mestre, olhe bem o que está falando.