Contra o ¨politicamente correto¨! 22/04/2011
- João Mellão Neto*
Iniciei minha vida profissional, como jornalista, em 1980. Ainda estávamos no regime militar - que hoje é conhecido como ditadura. Não havia mais censura. O cerceamento da nossa liberdade de expressão era mais sutil. E provinha dos dois lados. Num deles estava o poder. No outro, a ¨patrulha ideológica¨ da oposição. O pessoal do poder achava que tudo o que fazia era certo. Se alguém discordasse, só podia ser por ignorância ou má-fé. Já a patrulha entendia o mesmo, só que com os sinais trocados.
Mas havia ao menos certa ética na lide. Mil vezes ouvimos de nossos mestres do jornalismo: ¨Informação é informação; opinião é opinião. Misturar as duas coisas é antiprofissional. Distorcer a primeira para valorizar a segunda, então, é imoral¨.
Tudo bem. Em momentos de exceção, como aqueles, o maniqueísmo brotava naturalmente. Ser radical parecia ser a única saída. Era comum ouvir frases do tipo: ¨Quem não é meu amigo é meu inimigo¨. Ou até: ¨Quem é inimigo do meu inimigo é meu amigo¨. Era preto ou branco. Não existia cinza.
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O que me surpreende hoje em dia é que, depois de 26 anos de convivência democrática, ainda haja gente que pense assim. A ¨patrulha¨ agora tem um nome mais pomposo: ¨correção política¨. Quer dizer, abolição do nosso vocabulário de todas as palavras que tragam embutidos algum preconceito ou discriminação. Ou seja, quase tudo.
Imaginemos, por exemplo, o diálogo num hotel.
¨Boa noite, senhor, queira, por favor, preencher a ficha.¨
¨Hum... Não vai dar! Chamou-me de senhor, isso quer dizer que me prejulgou, tachando-me de idoso. Ou, no mínimo, de alguém com status social superior ao seu...¨
¨Desculpe-me, quis apenas ser respeitoso...¨
¨Eu vim aqui à procura de um quarto, não de respeito. Quem gosta de tratamento cerimonioso ou é aristocrata ou, pior, burguês metido a nobre.¨
¨Como, então, devo chamá-lo?¨
¨Cidadão, camarada, companheiro, qualquer coisa assim... Ah, e a sua ficha está incorreta. No item sexo constam apenas duas alternativas.¨
¨E existe alguma outra?¨
¨Várias! Escreva apenas ¨orientação sexual¨ e deixe um espaço em branco para ser preenchido.¨
¨A coisa está ficando preta!¨
¨Você não deve usar essa expressão. Ela define um quadro confuso, aludindo aos negros. Perdão, afrodescendentes.¨
¨Ai, meu Deus!¨
¨Essa sua exclamação também é excludente. Tem muita gente no mundo que acredita em outro deus. Como outros que cultuam vários deuses e também os que não acreditam em deus nenhum. De mais a mais, por que o seu deus atenderia, particularmente ao seu chamado?¨
¨E chamar alguém de t. d., isso pode?¨
¨Só se não for com sentido ofensivo ou depreciativo.¨
¨Com licença. Eu tenho de trabalhar.¨
¨O que você quis dizer com isso? Que eu não tenho trabalho? Só porque me visto como um estudante?¨
Qual é a razão da minha implicância com o conceito de ¨politicamente correto¨?
É que, no Brasil, o que era só uma recomendação acabou por se tornar um dogma. Não se pode chamar sequer de religião. Isso porque, apesar de cada uma delas reivindicar exclusividade sobre a palavra divina, todas aceitam coexistir de maneira pacífica. Já os fiéis do ¨politicamente correto¨, não! Eles primam pela intolerância.
Não é porque não se concorda com uma pessoa que se adquire o direito de excomungá-la. A campanha difamatória que alguns órgãos da imprensa fizeram, dias atrás, contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um bom exemplo disso. Tratou-se, a meu ver, de mais um caso de má conduta profissional. Simplesmente lhe atribuíram palavras que não eram dele e foram ao Congresso perguntar a opinião dos inquilinos que lá se encontravam: ¨Excelência, o que achou de FHC afirmar que não quer mais saber do povão?¨.
A resposta era previsível. Já estava implícita na pergunta. Acontece que ele jamais afirmou isso. É incrível que até experientes políticos aliados tenham caído nessa armadilha.
Li e reli várias vezes o longo artigo que ele publicou. O que pude entender é que o que ele pretendeu foi dar um belo pito na oposição: quem a exerce não pode lutar com as mesmas armas que o governo. Vai perder, porque o poder sempre tem os melhores instrumentos. Não se trata de fazer mais, mas de fazer diferente. E FHC apresentou várias sugestões nesse sentido. Em nenhum trecho de seu texto ele afirmou que a população mais carente devia ser deixada de lado. Resumiu-se a recomendar a seu partido que procurasse conhecer melhor o pensamento e os hábitos da nova classe C - ou ¨novas camadas possuidoras¨, no dialeto uspiano.
Mas foi essa a interpretação leviana que os tais ¨politicamente corretos¨ da imprensa repassaram ao público. Tentaram induzir a ideia de que o ex-presidente não passa de um ¨liberal com propensões elitistas¨.
Ora, se disserem isso de mim, é verdade! Mas FHC não cabe nesse figurino. Ele é e sempre foi um convicto social-democrata.
Ah, não é correto uma pessoa pública, como Fernando Henrique Cardoso, referir-se ao povo como ¨povão¨? Então, por que nunca protestaram contra as abundantes expressões ¨politicamente incorretas¨ de Lula? Como se pertencer ao PT fosse desculpa para alguma coisa...
Ora, pessoal, numa democracia é fundamental que os que estão no governo governem, que os opositores se oponham e que a imprensa noticiosa noticie. Somente assim o ¨povão¨ se torna apto a julgar. Embaralhar tudo isso só dá confusão: o discurso dos governistas é de oposição, os oposicionistas não se assumem. E os repórteres distorcem as reportagens.
É por isso que ninguém pode ter o direito de policiar as ideias de ninguém. Abaixo a ditadura! E abaixo o ¨politicamente correto¨, também!
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*JORNALISTA, FOI DEPUTADO, SE-CRETÁRIO E MINISTRO DE ESTADO - E-MAIL: J.MELLAO@UOL.COM.BR
BLOG: WWW.BLOGDOMELLAO.COM.BR