O mal menor no Peru 07/06/2011
- O Estado de S.Paulo
O que há para comemorar no resultado do segundo turno da eleição presidencial peruana de domingo é muito menos o nome do vencedor do que o nome da perdedora. O país se livrou da volta do fujimorismo, encarnado na candidatura da filha do ex-presidente que cumpre pena de 25 anos de prisão por corrupção e brutais violações de direitos humanos, a deputada Keiko Fujimori. Por mais que tentasse se desvencilhar da sombra do pai, os peruanos não esqueceram de que ela foi a sua mais íntima interlocutora - a "primeira-dama", como se dizia, de Alberto Fujimori, separado de sua mãe. A maioria, embora não uma retumbante maioria, preferiu correr o risco de levar ao poder um candidato de inquietante folha corrida que se declarou regenerado.
Vitorioso por pequena margem de votos, o nacionalista Ollanta Humala é um ex-militar como o caudilho venezuelano Hugo Chávez, que, como ele, já tentou dar um golpe de Estado, e que não se elegeu na primeira tentativa, em 2006, por sua proclamada afinidade com Chávez. Desta vez ele jogou fora, em sentido literal e figurado, o uniforme bolivariano, em favor da indumentária política com a qual outro líder regional, Luiz Inácio Lula da Silva, afinal chegou ao governo depois de três tentativas frustradas. Orientado na campanha por dois pragmáticos petistas da pesada, Luis Favre e Valdemir Garreta, Humala não apenas enchia a boca para louvar o ex-presidente brasileiro, como calava-se sobre o venezuelano - a não ser para dizer que não aceitava ingerência estrangeira na política peruana e desmentir que ele o tivesse financiado.
Completando a metamorfose de sua imagem pública, conforme a cartilha lulista, Humala respondeu com um "compromisso com o povo peruano" - nos moldes da Carta aos Brasileiros, de 2002 - aos fundados receios de que, no governo, o Estado peruano se imporia à economia de mercado graças à qual o país vem liderando as estatísticas de crescimento na América do Sul na média dos anos recentes, com 7% de expansão do PIB. Ele talvez não precisasse dar a palavra de ordem "centro, volver" para conquistar a ampla maioria dos votos das destituídas populações predominantemente mestiças dos grotões peruanos, cujas carências não foram atenuadas pelo progresso econômico. Já na eleição de 2006, a concentração da renda tinha-lhe valido grande votação no interior do país. Mas a guinada centrista não mudou o sentimento majoritário do eleitorado do Departamento de Lima, onde fica a capital. Ali, a filha de Fujimori venceu a disputa com cerca de 15 pontos de vantagem.
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Em geral, as elites peruanas nunca tiveram queixas do pai de Keiko. Ele assaltou o erário, dissolveu o Congresso e ordenou violências inomináveis contra as populações indígenas, a pretexto do combate (bem-sucedido) à guerrilha do Sendero Luminoso, mas não mexeu nos privilégios dos mais ricos. O fiel da balança, no domingo, acabou sendo a parcela do eleitorado que considerou Humala o menor dos males. Ninguém traduziu melhor essa preferência do que o escritor Mario Vargas Llosa, o mais respeitado intelectual de seu país. Antes ainda do primeiro turno de 10 de abril, que tiraria do páreo o ex-presidente Alejandro Toledo, o ex-prefeito de Lima Luis Castañeda e o ex-ministro da Economia Pedro Paulo Kuczynski, o liberal Llosa advertiu que uma rodada final entre Keiko Fujimori e Ollanta Humala obrigaria os peruanos a escolher "entre o câncer e a aids".
Reiniciada a campanha, ele arquivou a analogia e declarou o seu apoio a Humala. Quando a apuração começou a confirmar as tendências apontadas pelas pesquisas da antevéspera, Llosa comemorou, em Madri, "a derrota do fascismo" no Peru. Agora, aos democratas como ele resta torcer para que Humala tenha em mente que governará um país polarizado e que a sua eleição não lhe concedeu de maneira alguma um mandato para alterar os fundamentos da economia peruana. No plano regional, o que há para comemorar é que o êxito de Humala representa o fracasso do seu antigo mentor Hugo Chávez - e um legado positivo do acendrado senso de realidade de Lula.