O incerto futuro da Líbia 22/10/2011
- O Estado de S.Paulo
Como se o acaso quisesse pôr os fatos históricos em pratos limpos, a última incursão da Aliança Ocidental na Líbia pulverizou a já desacreditada versão de que a Otan se engajou no país apenas para impedir que o ditador Muamar Kadafi cumprisse a ameaça de massacrar as populações dos redutos da insurgência contra a sua tirania de quase 42 anos. Invocando justificadas preocupações humanitárias, a resolução do Conselho de Segurança (CS) aprovada por 10 votos e 5 abstenções (entre elas as do Brasil e da Alemanha), autorizou em março o abate de aviões líbios na zona de exclusão aérea a ser imposta "por todos os meios necessários".
A expressão não tardou a assumir o sentido desejado por seus autores. Primeiro, com os bombardeios às tropas do regime a caminho dos bastiões inimigos. Em seguida, com as investidas contra as casamatas de Kadafi em Trípoli. Depois, coordenando os seus ataques com as sortidas rebeldes às quais davam apoio logístico. Sem isso, os insurgentes não teriam tomado praticamente todo o território líbio e, por fim, a desguarnecida capital, onde o Conselho Nacional de Transição (CNT) procura harmonizar as diferentes facções e tribos que se ergueram contra Kadafi.
Por todos os meios necessários, portanto, a França, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, nessa ordem, permitiram que o país se livrasse de um déspota desvairado, que passou 42 anos fomentando o terrorismo, incluindo ataques a bases militares na Europa e a infame explosão de dois jatos comerciais, um sobre o Níger e outro sobre a Escócia, matando 440 pessoas. Mas ele já tinha trocado de lado: desistiu de ter a bomba atômica, passou a esmagar com a mão dura de sempre os fundamentalistas islâmicos, aliou-se aos EUA contra a Al-Qaeda e abriu o petróleo líbio à ENI italiana, à Total francesa e à BP do Reino Unido, entre outras gigantes do setor.
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Em 2007, armou sua tenda, literalmente, em um jardim do centro de Paris e fechou negócios biliardários com o presidente Nicolas Sarkozy. No mesmo ano, recebeu na sua própria tenda em Trípoli o então premiê britânico Tony Blair, que voltou com a autorização para que as Forças Especiais do Reino Unido pudessem treinar nos desertos líbios. E nesse estado de graça estavam as relações dos líderes democratas do Ocidente com o tirano homicida quando um vendedor ambulante tunisino se imolou em protesto contra o déspota Zine Ben Ali. Surgia a Primavera Árabe - e tudo saiu do lugar.
A reação pavloviana de Sarkozy foi defender seu aliado em Túnis. O britânico David Cameron, de início, fez o mesmo em relação ao ditador egípcio Hosni Mubarak, enquanto o americano Barack Obama ficava em cima do muro. Mas a rua árabe os levou a corrigir o rumo. Quando o fogo se alastrou para a Líbia, deram-se conta de que estavam diante de uma oportunidade excepcional para resgatar os interesses estratégicos e econômicos de seus países, e a sua imagem política nas antigas colônias ou áreas de influência. Bastava agir, dessa vez, no lado certo. Foi o que terminaram de fazer na quinta-feira, quando caças franceses e americanos destruíram uma caravana de veículos que tentavam escapar de Sirte, terra natal de Kadafi, invadida pelos rebeldes.
Ele foi um dos poucos a escapar, escondendo-se numa tubulação. Encontrado, foi sumariamente executado, enquanto a multidão em volta uivava. No Iraque, Saddam Hussein pelo menos teve direito a julgamento. A selvageria em Sirte indica que será mais do que "tortuoso", como até Obama admitiu, o caminho da Líbia para a democracia - se for possível chegar a ela na Líbia. Ajuntamento de tribos com mais rivalidades do que pontos em comum, a Líbia carece de líderes e forças políticas nacionais. Faltam-lhe ainda cultura cívica e experiência para construir as instituições livres que o país nunca teve em 60 anos de vida independente.
Na esfera internacional, a forma brutal como Kadafi terminou os seus dias reaviva o debate sobre as intervenções "humanitárias" armadas em conflitos internos com feições de guerra civil.
É um problema de legitimidade e também de coerência. Por que na Líbia de Kadafi sim, e na Síria de Assad não?