Conta de luz, essa desconhecida 31/10/2011
- Cláudo J.D. Sales*
O tema tarifário desperta paixões, no Brasil e no mundo, o que é compreensível. Serviços públicos como os de energia, telecomunicações, água e saneamento afetam toda a população e impactam as cadeias produtivas. Como tais serviços são estruturados na forma de monopólios naturais, é necessária a atuação do Estado para evitar que o monopolista defina livremente os preços desses serviços. Quem assume esse papel de Estado é o regulador, entidade com lentes no longo prazo e que não pode ser confundida com governos, que vêm e vão.
Não bastasse a complexidade técnica do papel da regulação, o tema tarifário é constantemente contaminado por interpretações equivocadas - ou mal-intencionadas - que amplificam as paixões e produzem enormes desafios de comunicação.
Dois desses desafios podem ser destacados. O primeiro é consequência da complexa anatomia da tarifa de eletricidade, que camufla uma altíssima carga tributária. O segundo é a tentativa de correlacionar a conta de luz com o aumento da inflação, uma tese que não é acolhida pela realidade dos números.
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Anatomia da tarifa e carga tributária. A tarifa de eletricidade reflete a cadeia de valor do setor para cobrir os custos das centenas de empresas estatais e privadas que geram, transmitem e distribuem energia.
O que poucos sabem é que pesam sobre os custos produtivos de eletricidade 36 tributos e encargos criados pelos Poderes Executivo e Legislativo e que totalizam 45,1% da tarifa de eletricidade, de acordo com estudo da PricewaterhouseCoopers.
Portanto, os governos federal, estaduais e municipais abocanham a maior parcela da tarifa e, em algumas distribuidoras, a parcela sob sua responsabilidade é inferior a 24%. Isso quer dizer que cerca de 76% do dinheiro coletado pelas 63 distribuidoras de eletricidade não tem nada que ver com a atividade de distribuição. E que a maior parte dos 76%, após repasse para cobertura dos custos de geração e transmissão, vai para os cofres dos governos.
Tarifa e inflação. Uma justificativa frequente para intervenções tarifárias é a de que a eletricidade impacta muito a inflação e, portanto, é necessário manter vigilância máxima sobre variações da conta de luz, tese que justificaria interferências à margem da lei e dos contratos. Alguns grupos de pressão aproveitam a deixa e vão além: dizem que a variação da tarifa de eletricidade tem sido superior à da inflação.
O relatório A Dinâmica da Inflação Brasileira, emitido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em julho deste ano, contradiz as duas teses.
Em primeiro lugar, o peso da energia elétrica no IPCA é de 3,4%, muito abaixo do que se poderia concluir pela virulência dos ataques. Em segundo lugar, o relatório afirma que a energia elétrica teve "variação de preços geralmente inferior à meta, -6,2%, em 2007; +1,1%, em 2008; e +3%, em 2010; com a exceção dos +4,7% em 2009".
E em relação à falaciosa tese - mais geral - sobre a contribuição de preços administrados para a inflação, o Ipea conclui: "Nos últimos quatro anos as taxas de variação dos preços monitorados têm em geral se mantido abaixo do centro da meta e auxiliado a segurar a inflação".
As pressões sobre a Aneel. Nas próximas semanas a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) finalizará a metodologia que vai disciplinar o chamado Terceiro Ciclo de Revisão Tarifária Periódica, metodologia que será aplicada a todas as distribuidoras de eletricidade para os próximos quatro anos. O processo de construção dessa metodologia foi longo e envolveu inúmeras interações com a sociedade, incluindo processos de consultas públicas documentais e audiências públicas presenciais.
Nesta reta final, o regulador precisa equilibrar serenamente todas as contribuições recebidas e, como substrato para suas decisões, considerar dois fatos: as distribuidoras respondem por só 24% da conta de luz; e a tarifa de eletricidade tem ajudado a combater o processo inflacionário.
Isso posto, é preocupante a pressão adicional que o regulador vem colocando sobre a parcela tarifária que custeia a atividade de distribuição, parcela que já foi dramaticamente comprimida: os atuais 24% eram 37%, em 1998. Há indícios dessa pressão tanto de caráter geral - que resultariam diretamente na redução da capacidade de investimentos - quanto de caráter específico, como a supressão de benefícios fiscais, definidos em lei, para empresas que atuam no Norte e no Nordeste do País.
Mesmo navegando num mar com tantos mitos e pressões políticas, o regulador deve produzir uma metodologia que promova o aumento da produtividade das empresas e o compartilhamento dessa produtividade com o consumidor. Sem sucumbir a artificialidades, observando as leis e os contratos e eliminando o risco de modelos teóricos não testados.
A Aneel deve dar o primeiro passo para acabar com os mitos que fazem da conta de luz uma desconhecida para a maioria da população. O caminho não será fácil, mas, em benefício do País, é o único a ser trilhado.
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*É PRESIDENTE DO INSTITUTO "ACENDE BRASIL". SITE: WWW.ACENDEBRASIL.COM.BR