O ídolo improvável 07/12/2011
- Daniel Piza - O Estado de S.Paulo
Certo, a conquista do título foi emocionante e merecida, mas para mim a imagem que vai ficar do domingo é a que antecede o apito inicial do clássico paulista: todos os jogadores e torcedores do Corinthians com o braço direito erguido, punho fechado, imitando a maneira de Sócrates comemorar o gol, para homenageá-lo poucas horas depois de sua morte. Foi a última vez que o "Doutor", o "Magrão", comandou a plateia. Pois era esse ídolo improvável, um jogador de gestos estudados e concisos que se tornou o maior ídolo de uma torcida imensa e passional. O que mais me chamava a atenção em Sócrates não eram as suas declarações políticas tantas vezes ingênuas fora de campo, por mais que tenha tido um papel fundamental - como lembrou o cantor Toquinho no bar Melograno no mesmo dia - para a abertura democrática do Brasil, e sim o fato de cativar o mais fanático cidadão com sua linguagem incomum dentro de campo, feita de passes inteligentes, gols providenciais e liderança mental.
O toque de calcanhar ficou como sua marca visual da mesma maneira que as bandeirinhas se tornaram sinônimo da pintura de Volpi. Como em Volpi, seu repertório técnico era muito maior que isso, mas há um motivo para que tenha se tornado uma marca. O calcanhar de Sócrates emitia um recado cerebral, mais ou menos como se dissesse "Posso não ser um atleta, mas não preciso ser": aquele toque eliminava o problema de ter de girar o corpo, erguer a cabeça e encontrar um colega; não apenas o eliminava, como acrescentava o valor da surpresa eficiente, do curto e culto circuito, do olhar conceitual. Os passes de Sócrates raramente eram previsíveis e, quando eram, ainda assim não havia como evitar o desfecho. "Não sou rápido, mas penso rápido" - eis outra maneira de traduzir o gesto.
Não que Sócrates fosse incapaz de agilidade, fôlego e outros atributos fisiológicos que um atleta requer. Mas não era essa sua ênfase, daí a improbabilidade sua condição de ídolo. Em muitos aspectos não parecia um jogador, um profissional do esporte de Pelé. Usava barba; era quase desengonçado em sua magreza; fumava e bebia abertamente; tinha opiniões próprias em vários assuntos e via os futebolistas como categoria trabalhadora; não corria muito, não era de entrar em divididas, não fazia musculação; não beijava o escudo ou dava carrinho para ganhar aplausos pelo suposto esforço; muito menos posava para a câmera na hora da bola parada. Erguia o braço, andando, como se transferisse a vibração para a massa ou, como escrevi, feito "um para-raio" ou "caniço pensante", "um clínico em meio à temperatura febril da arena". Talvez pudesse ter sido ainda melhor com mais condições atléticas ou prolongado o auge da sua carreira? Mas aí não seria ele, e seu recado se diluiria na normalidade.
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Num campeonato decidido num 0 x 0 sem uma jogada sequer digna de nota, tal recado não poderia ter melhor endereço. O Campeonato Brasileiro de 2011 teve emoção, disputa, alguns belos gols, a volta de nomes como Ronaldinho, Deco, Juninho e Liedson, a confirmação de jovens como Damião e Dedé, vários lances primorosos de Neymar, a prova de que continuidade, padrão e banco fazem diferença para o vencedor, como fizeram para o Corinthians. Mas não teve o que Sócrates tinha.
É evidente que no futebol de hoje é mais difícil não ser "atleta"; não se trata de achar que Sócrates possa ser modelo. Mas a inteligência e a habilidade com a bola continuam a ser determinantes - ou são ainda mais determinantes num futebol tão corrido e burocrático - como Messi, com apenas 1,69 metro, e Neymar, com seus 66 quilos, seguem demonstrando. O tipo de inteligência e habilidade de Sócrates, no entanto, anda escasso. Ganso é o único remanescente do estilo, mas ainda não parece à vontade com ele. O Brasileirão também não foi pródigo em artilheiros, outra característica da tradição nacional, e essas duas carências indicam o nível técnico do campeonato.
Mais técnica não traria menos emoção. Ao contrário. E poucos como Sócrates souberam e demonstraram essa realidade.