Os fenômenos mórbidos da crise 06/02/2012
- Luiz Sérgio Henriques*
A metáfora é muito boa, teve origem num clássico da política do século 20 e, definitivamente, tornou-se um bordão repetido por gente de todos os quadrantes: vivemos num tempo de crise sistêmica da economia mundial, em que o velho insiste em não morrer e o novo ainda não nasceu, de modo que o cenário por vezes é ocupado por fenômenos mais ou menos mórbidos. De fato, deparamos com uma inédita mistura de sofisticação e barbárie para onde quer que olhemos: democracia e capitalismo convivem com dificuldade nos países do Ocidente desenvolvido, com um preocupante esvaziamento das formas políticas que vigoraram durante o compromisso social-democrata. Além disso, inexiste alternativa de sistema. E restos dramáticos daquilo que um dia, mais ou menos plausivelmente, se arvorou em tal alternativa desabam inapelavelmente.
Refiro-me, em primeiro lugar, à dantesca sequência de cenas orwellianas que dominaram o processo sucessório na Coreia do Norte e continuarão disponíveis por tempo indefinido na rede de computadores, para espanto renovado de quem se puser a revê-las. Fácil demais desqualificar aquele país como desimportante no mundo, não combinasse ele, de modo paradoxal, um universo concentracionário à moda dos gulags, uma população rural faminta e a posse de artefatos nucleares a serviço de um nacionalismo agressivo. A morte de Kim Jong-il representa uma peça de arqueologia ideológica, a repetir, e não como comédia, o abatimento moral dos comunistas dogmáticos por ocasião da morte de Stalin, no distante 1953.
Assim, o que veio depois e aconteceu nos nossos dias ilumina o que veio antes e aconteceu há muitas décadas. A anatomia do homem, dizem, é a chave para entender a do macaco, e realidades históricas que marcaram toda uma geração de comunistas, como o culto à personalidade, subitamente ganharam carne e osso nas ruas desoladas de Pyongyang. Essa arqueologia contribui para explicar, ainda, a subalternidade cultural do comunismo histórico e sua incapacidade estrutural de gerar modos diversos de exercer o poder e organizar a vida social.
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As imagens foram fortíssimas e, num certo sentido, devastadoras, mas talvez não as evocasse, mais de um mês depois, se uma tradicional força da esquerda brasileira não tivesse considerado todo o episódio segundo a chave do anti-imperialismo e não se reportasse ao grupo dirigente coreano na qualidade de "partido irmão", para usar uma expressão de outro tempo. Haveria nisso o risco de tornar o Brasil uma imensa Coreia do Norte? Nenhum risco, evidentemente. Mais preocupante é o sinal de atraso político e cultural - um imenso atraso que interfere nas possibilidades de compreender e mudar democraticamente o nosso país.
Muito mais próxima de nós, geográfica e sentimentalmente, é a outra figura do velho "socialismo real" que se desfaz a olhos vistos. Em Cuba, a poesia da revolução e seus heróis há muito se dissolveu na prosa de um burocratizado regime de partido único, com a inevitável gerontocracia daí decorrente, sua rigidez e seus espasmos autoritários.
É saudável, quando se procede a este tipo de crítica, repudiar previamente o embargo imposto pelos Estados Unidos há décadas, ineficiente do próprio ponto de vista dos seus objetivos declarados: Fidel e Raúl Castro dominam autocraticamente a ilha a despeito desse embargo e, antes, o usam como instrumento de controle: quem não se alinha automaticamente é visto como "agente do imperialismo", o que parece incluir, absurdamente, na perspectiva da direção cubana, mesmo os prisioneiros de consciência que levam o protesto até o sacrifício da própria vida.
Guantánamo, por seu turno, é uma evidente aberração: uma terra de ninguém para onde foram sequestradas, e meticulosamente torturadas, as vítimas da guerra americana ao terror. Nenhuma complacência com essa prisão, da mesma forma que não é possível desculpar os que, infamando a ideia de socialismo, deixaram morrer Orlando Zapata e Wilmar Villar.
Neste ponto, a tragédia também nos toca de perto, com as terríveis declarações do ex-presidente Lula por ocasião da morte de Zapata e as reiteradas manifestações de apreço ao regime por parte de autoridades brasileiras democraticamente constituídas. Isso sem falar na veloz repatriação dos boxeadores Erislandy Lara e Guillermo Rigondeaux pelo então ministro da Justiça, num contexto em que é bizarro alegar desconhecimento do precário estado das liberdades civis e políticas na ilha.
Risco de nos transformarmos numa Cuba de dimensões continentais? Nenhum. Como no caso da Coreia do Norte, o sintoma é "só" de horizonte político limitado: uma crônica incapacidade de conceber a mudança social fora dos velhos parâmetros e de perceber que, longe de ser o caminho para o socialismo, a democracia é o próprio caminho do socialismo. A supressão da democracia política, em todo caso, é indício certeiro do surgimento de fenômenos mais ou menos mórbidos e não pode ser justificada pela invocação ritual do paradigma revolucionário.
Os reais amigos de Cuba sabem que a hipótese de autorreforma do regime - combinando estrutura política autoritária com mercados liberalizados, sem autonomia de organização sindical e demais direitos de associação - terá vida curta. Contudo haverá na ilha vastos setores que aspiram a liberdades e, ao mesmo tempo, intuem que as conquistas do seu peculiar welfare, em grande medida afetado pelo colapso da URSS, correrão um risco fatal se o país enveredar por uma saída "chinesa" ou se entregar aos desmandos de um mercado sem regras. Aí, entre tais setores, as raízes de uma futura esquerda socialista e democrática, programaticamente distante das concepções de controle monopolista do poder político e econômico.
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*TRADUTOR, ENSAÍSTA. É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG