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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Bahia de todos os medos
12/02/2012 - Gaudêncio Torquato*

"Você já foi à Bahia, nega? Não? Então vá!"

O estribilho do samba de Dorival Caymmi (quem não se recorda?) é o eco de um passado em que "nas sacadas dos sobrados da velha São Salvador" o visitante se deparava com "lembranças de donzelas do tempo do imperador" e "um jeito que nenhuma terra tem". A plácida Bahia de Todos os Santos, imortalizada por Jorge Amado, seu maior escritor, é hoje (quem diria?) um território banhado de sangue. Na esteira da greve de policiais militares (PMs), iniciada em 31 de janeiro, a bela cidade da ladeira do Pelourinho, do Senhor do Bonfim, dos Oxalás e babalorixás exibe um rastro de morte: 136 pessoas assassinadas (até o momento). Banalizada pela criminalidade que se expande nas metrópoles, a estatística passa despercebida, a denotar a violência que esgarça o tecido social, multiplicando mortos, espalhando medo e afetando o modo de vida das pessoas. A greve na Bahia chama a atenção pela teia de questões que levanta, a partir do número de homicídios, cuja dimensão agride a imagem de uma terra pacífica e acolhedora, como parecia Salvador. É chocante ver uma onda criminal espraiando violência numa comunidade harmoniosa de "prosa calma, gestos comedidos, sorrisos mansos e gargalhadas largas", como descrevia o baiano Amado.

O fato é que a cultura das gentes e a morfologia das cidades não resistem às agressões da modernidade. Ou, para usar os termos duros do filósofo Sérgio Paulo Rouanet, "como a civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente, num vácuo civilizatório. Há um nome para isso: barbárie". Se a Bahia rasga o retrato de placidez, é porque foi levada a navegar nas águas do paradigma do caos, que dá abrigo a comportamentos desbragados, vandalismo, arruaças, quebra da ordem, desrespeito, fraturas sociais de todo tipo.


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Dito isto, coloquemos a greve dos PMs na panela que a cozinhou por muitos dez dias. O que abre a polêmica é a questão salarial, que se liga ao bolso e, por conseguinte, ao estômago. A planilha de ganhos dos PMs do País mostra uma gradação, que vai da escala mais baixa (pasmem, Rio de Janeiro), com R$ 1.031,38, à mais alta, no valor de R$ 4.129,73 (Distrito Federal). A Bahia ocupa, nessa relação, a 11.ª posição, com o salário de R$ 1.927. Pode um PM, com três filhos, viver dignamente com esse dinheiro? Salta à vista a discrepância entre os proventos nas 27 unidades da Federação.

Nesse sentido, é racional o propósito da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 300, centrada na meta de harmonizar os salários dos policiais, evitando as diferenças absurdas que se veem na planilha. Pode ser que o nivelamento por cima (tendo como referência o valor pago no DF) mereça ajustes, levando em conta condições e custo de vida nas diversas regiões do País, mas é injusto que para as mesmas funções e obrigações - e riscos - policiais sejam remunerados de modo tão diferente. Por que não se tentou equacionar essa pendenga antes, quando se sabe que a PEC 300 tramita na Câmara desde 2008? Só agora, sob os incêndios grevistas ocorridos no Rio e em outros três Estados (CE, MA, PI), o tema volta ao foro de debate, podendo até, como atestam gravações, transformar-se em estopim de ampla mobilização, cujas consequências se projetarão sobre o carnaval, chegando, mais adiante, à cena político-eleitoral, atingindo atores de todos os partidos. Como o problema diz respeito aos entes estaduais, a cobrança recairá sobre a policromia partidária, não devendo ser considerada ganho de um lado e perda de outro. Importa aduzir que os governos estaduais deveriam ter debatido a situação e, ante a magnitude da demanda, solicitado amparo da esfera federal. No momento em que se exibem supersalários, gorduras e quadros excedentes em estruturas governativas, a precária condição dos policiais torna-se mais escandalosa.

O segundo ponto diz respeito ao direito de greve dos policiais militares. Podem fazer greve? Sim, nos termos da Constituição. A greve é um direito com eficácia limitada. Para ser realizada carece de respaldo legal do Estado. Os quadros militares, como outros servidores públicos, ainda não foram abrigados pela força da lei em matéria de greve. Não são escudados pela regulamentação que atinge apenas funcionários celetistas, fato que gera muita polêmica. No foco da discussão está a natureza do serviço público. A sociedade não pode ser desprovida dos serviços essenciais do Estado, como educação, saúde e segurança. Como devem agir os PMs se o Estado, por omissão, não lhes dá cobertura legal para realizarem um movimento paredista? Com bom senso, antes de tudo. Significa que podem fazer uma mobilização parcial de quadros, sob disciplina, não compactuando com ações violentas, ocupações de prédios, sequestros de autoridades, vandalismo. Não é o que tem ocorrido. A violência campeia. Portanto, por omissão, o Estado tem culpa. Por atos insensatos, servidores em greve perdem a razão. Dá empate na régua da insensatez.

E o que fazer? Regulamentar a lei de greve do servidor público, instrumento que determinará os porcentuais que devem continuar a exercer as funções do Estado nas instâncias federativas e nas áreas da administração direta, autárquica e fundacional dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Em termos imediatos, inserir na agenda o projeto de lei sobre a matéria, de autoria do senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP). No mais, tentar resgatar a confiança social, o diálogo harmônico entre os atores, sob o lume da justiça.

Quem sabe não veríamos novamente a Bahia com todos os santos em seu devido lugar, sob o enlevo boêmio do poetinha Vinicius de Moraes? "Um velho calção de banho/ O dia pra vadiar/ Um mar que não tem tamanho/ E um arco-íris no ar/ Depois na praça Caymmi/ Sentir preguiça no corpo/ E numa esteira de vime/ Beber uma água de coco"...

...

*GAUDÊNCIO TORQUATO, JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO; TWITTER @ GAUDTORQUATO

  

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