Diálogo como espécie em extinção na política 22/06/2012
- Fernando Gabeira*
Algumas coisas estranhas ocorrem no Brasil. Nada apocalíptico como o sertão virando mar, o mar virando sertão. Mas desconcertantes, eu diria. Deputados da CPI do Cachoeira se encontram com Fernando Cavendish num restaurante da Avenue Montaigne, em Paris. Um homem me disse na rua: "Os deputados alegaram que foi uma coincidência. Não dá para ouvi-los. Acham que somos otários". Concordei, para encurtar a conversa (estava com pressa). Não acho que nos consideram otários. Simplesmente deixaram de fazer sentido, quebraram as pontes de comunicação, eliminaram o diálogo racional que fertiliza a política.
É o caso do presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), recusando-se a dizer como tinha sido gasto o dinheiro dado pelo governo para a construção de uma sede na Praia do Flamengo: "A UNE é uma entidade privada. Não precisa explicar como gasta seu dinheiro".
Todos sabem que recurso repassado pelo governo, ao ser aprovado no Congresso, tem uma finalidade explícita para que seu uso possa ser comprovado depois. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao comentar o assunto, atribuiu a cobrança de prestação de contas a uma manobra típica de ano eleitoral. É preciso ter "casca grossa", disse Paes, "a UNE é maior do que tudo isso".
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A denúncia sobre o mau uso das verbas partiu do Tribunal de Contas da União (TCU) e foi publicada no O Globo. Paes dá a entender que o jornal publicou a matéria para enfraquecer as candidaturas governistas, como a dele. Na sua fantasia para jovens socialistas, começou a luta de classes do O Globo contra ele e seus camaradas da comuna de Paris, aqueles do guardanapo na cabeça.
O Supremo Tribunal Federal levou sete anos para julgar o mensalão. O ministro Ricardo Lewandowski bateu todos os recordes históricos para apresentar o relatório de um processo. Ainda assim, alguns acusados afirmam que o Supremo se precipitou ao marcar o julgamento para agosto. Neste território do mensalão, a fantasia corre solta. Luiz Carlos Barreto escreveu um artigo recente defendendo José Dirceu e citou Fidel Castro. Lembrou que na sua visita ao Brasil, conversando com socialites, Fidel, ao ouvir queixas sobre Carlos Lacerda, perguntou: ¿Por qué no lo matan? O amigo Barreto esqueceu que, na história real, tentaram matar Lacerda e criaram uma crise sem precedentes para o governo de Getúlio Vargas. Foram os precursores do que hoje chamamos aloprados.
O próprio José Dirceu, que vinha se comportando como um acusado clássico, afirmando sua inocência e desejando um julgamento rápido, despediu-se de nós. No encontro com a juventude socialista do PCdoB, disse que o julgamento representava a batalha final e que sua geração estava em causa.
Qual seria a geração de Dirceu? Os nascidos nos anos 50? Os que fizeram a luta armada? Nos anos 50 nasceu muita gente com trajetórias distintas. Na luta armada havia gente nova, como Cesar Benjamin, e idosos, como Joaquim Câmara Ferreira e Apolônio de Carvalho. Ao levar uma suposta geração para o banco dos réus, Dirceu carrega consigo um inútil colchão de ar, apenas um conforto íntimo para a longa maratona.
Quanto à batalha final da juventude do PCdoB contra amplos setores da opinião pública, haja chope e caipirinhas. O TCU lamenta que a UNE lance bebidas alcoólicas em suas prestações de contas. Numa batalha final, estarão, pelo menos, livres desse pequeno constrangimento.
Todos esses episódios marcam o fim de certa racionalidade política. É uma ilusão achar que nos consideram otários. É uma ilusão, também, supor que estão só delirando. No fundo, a escolha, por não fazer sentido, não é para se afastar do debate, mas se inserir nele de uma nova maneira. Nela, as evidência não contam, apenas as versões. Tudo é possível, se houver um batalhão de internautas pagos, empresas especializadas em influenciar redes sociais.
É uma situação nova no País. Até os militares tinham preocupação com coerência, embora, quando achavam necessário, encerrassem a discussão no porrete.
Parte do grupo que domina hoje a vida política do País resolveu falar o que quiser, no momento que escolher. Quando Cesar Maia me apoiou, muitos amigos sinceros e bem intencionados foram contra a aliança. Tinham argumentos fortes e verdadeiros que até hoje respeito. Mas a pressão mesmo foi feita na internet pelos inflamados militantes virtuais: era desprezível porque aceitei o apoio de Cesar Maia.
Agora, o sertão não virou mar nem o mar virou sertão. Mas Maluf abraçou Lula, que abraçou Maluf, celebrando uma aliança. Como se chamará essa nova entidade? Malula? Luluf? Não importa. O interessante é vê-los agora, os militantes da internet, justificando uma opção dessa grandeza. Na arquitetura política que montaram havia muita gente na mira da Polícia Federal. Era necessário alguém perseguido pela Interpol para dar um tom cosmopolita. Da cueca a New Jersey, não há fronteiras para o fluxo de dólares.
Sumiram os debates baseados na evidência. Basta antepor uma versão e os problemas se resolvem. O que adianta afirmar a impossibilidade estatística de um encontro acidental num restaurante de Paris entre deputados que investigam a Delta e o dono da empresa, Fernando Cavendish?
Esse é um modo de argumentar superado pelos novos tempos. O esforço legítimo de estabelecer o que realmente aconteceu se volta para o passado, ao qual dedicamos uma Comissão da Verdade. Se alguém se interessar, no futuro, por investigar o que se passa hoje no Brasil, provavelmente dará grandes gargalhadas. A tentação é lembrar do Festival de Besteiras que Assola o País, criado por Stanislaw Ponte Preta. Mas o momento é outro.
Quando a Delta diz que sofreu bullying empresarial, não está se importando com os humoristas. É sua versão para enriquecer o pântano, sua voz na polifonia.
Alguns interlocutores se foram de qualquer maneira. Resta esperar que um dia voltem a fazer sentido, num diálogo responsável e transparente diante de nossas tarefas nacionais, num mundo cheio de novos desafios.