Eleitor faz a festa da razão 08/10/2012
- Gaudêncio Torquato*
Os ciclos eleitorais se repetem, mas nunca são exatamente iguais, confirmando o sempre lembrado axioma de Heráclito: "Nenhum homem é capaz de atravessar o mesmo rio duas vezes, porque nem ele nem o rio serão os mesmos".
O ciclo que hoje se encerra na grande maioria dos municípios e abre as urnas do primeiro turno nas cidades com mais de 200 mil eleitores exibe sinais que deixam transparecer mudanças no comportamento de parcelas populacionais, particularmente na esfera da razão, na qual se armazenam os valores do bom senso, da ponderação, do exercício crítico, enfim, da capacidade do cidadão de fazer escolhas livres sem prestar contas à engenharia da persuasão.
O toque novidadeiro, só perceptível a olhos mais atentos, permite observar conjuntos eleitorais menos envolvidos na embalagem emotiva das campanhas, a denotar certo distanciamento (e ligeira névoa de frieza) de eventos e discursos com que os candidatos procuraram cooptar sua adesão.
PUBLICIDADE
Exemplo é o embate na campanha paulistana, a maior do País. Mesmo sob o tiroteio pesado dos últimos dias, com foco na desconstrução de perfis, a campanha não chegou a empolgar.
Até a militância de tempos d'outrora, tão barulhenta, hoje parece recolhida num exercício de autorreflexão, como se temesse ver surrados refrãos caírem no vazio por falta de eco.
O fato é que o pleito eleitoral bate nas urnas sob temperatura amena, exibindo mais interrogações que certezas e razoável perplexidade. A fervura que em pleitos anteriores esquentava as bases dos maiores partidos, entrando em ebulição na reta final, mudou de ares e parceiros, ensaiando uma fuga das metrópoles para se abrigar em espaços menores, onde a contenda eleitoral reúne grupos remanescentes dos velhos tempos. Em longínquos rincões, aí, sim, é possível ouvir o barulho dos bumbos e o fragor da batalha entre alas. O envio de forças militares para garantir a segurança do pleito em alguns Estados comprova que a velha política continua a ter raízes no território. Já as populações das metrópoles sinalizam um novo olhar para a política. Exigem soluções pragmáticas para suas demandas e o entendimento das especificidades regionais. Uma capital como São Paulo, por exemplo, abriga dez grandes cidades, cada qual com sua identidade. Por conseguinte, ao sentido do discurso global, que se dilui, ganha volume a micropolítica, o atendimento das demandas pontuais e localizadas, a partir da frente mais sensível, que é a da saúde.
Nessa modelagem, as massas anônimas, heterogêneas e dispersas cedem lugar a grupos homogêneos, que se fazem presentes, exigindo compromissos e sob o instinto da razão. Lembre-se, a propósito, que nenhum candidato, em nenhuma cidade brasileira, conseguiu juntar em comício, este ano, mais que 15 mil a 20 mil pessoas. As massas desconcentraram-se. É verdade que os comícios d'antigamente fisgavam as multidões porque artistas e celebridades povoavam os palcos dos shows. Mas a falta de entusiasmo com os pleitos tem-se adensado na esteira do descrédito da classe política. Escândalos em série, máfias flagradas com a boca na botija e promessas não cumpridas por governantes acabam afastando a comunidade da esfera da representação. O imenso vazio formado no meio da sociedade passa a ser ocupado por entidades que fazem a intermediação de grupos, setores e categorias profissionais.
Ao desinteresse dos cidadãos pela política soma-se uma constelação partidária amorfa, reunindo siglas que se distinguem por matiz cromático, e não por escopos ideológicos. Desbotados na paisagem, emergem figurantes, alguns da velha guarda, outros de tropa recém-formada, muitos se fazendo de dândis para atrair o eleitor. A planilha de candidaturas na maioria das capitais contém um feixe de caras novas. O fato seria uma boa notícia caso a pulga não zumbisse em nossas orelhas com a indagação: são perfis que encarnam renovação ou caras novas da política cheia de bolor? Seria razoável falar em avanço olhando para as novas fisionomias que desfilam nas telas da TV? Os partidos não continuam a usar as práticas da antiga política?
E assim as dúvidas engolfam as molduras que abrigam os contendores do pleito. Questionam-se, ainda, o papel dos ícones eleitorais e os métodos adotados nas campanhas, como as fórmulas do marketing eleitoral. O peso dos tradicionais influenciadores do voto tem diminuído. A força do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já não é a mesma. Não se trata de afirmar que seu carisma se estreita, mas de constatar que seu poder de induzir o eleitorado é limitado, conforme se aduz da tentativa de alavancar candidaturas do PT em algumas cidades. Parece sofrer também com o desgaste que afeta as velhas lideranças.
A verdade é que o eleitor expande sua autonomia. Desfaz-se dos cordões puxados por condutores de massas. Na oficina da maquinaria eleitoral, divisa-se, ainda, a engrenagem de um marketing que não adquire adornos desde os idos de Fernando Collor, que o elevava ao mais alto patamar da exacerbação. Os atuais formatos esgotam-se. Por exagerarem no personalismo em detrimento das ideias. Os painéis sobre a vida dos candidatos, as reportagens sobre os feitos de ontem e os de amanhã, os depoimentos de populares, as falas de apoiadores, efeitos fantasiosos entraram no túnel da saturação. Poucas mensagens afetam o sistema cognitivo dos ouvintes.
Chama a atenção, por último, o ar compenetrado do eleitor que hoje acorre às urnas. Sua postura, como a que se observa na maior metrópole do País, é a de que está saturado de velhas querelas. Parece, assim, querer distância dos polos que se alternam nas vivências em eterna repetição, como descreve Nietzsche na clássica figura do Eterno Retorno. Divisa-se um cidadão que clama pelo império da lei e da ordem, da moral e da ética, da transparência e do dever. E que se anima com a expectativa de ver o Brasil abrindo horizontes promissores na política após o julgamento pelo STF da Ação Penal 470.
Sob essa crença, o cidadão vai às cabines eleitorais.
...
*JORNALISTA, PROFESSOR TITULAR DA USP; É CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO. TWITTER: @GAUDTORQUATO