Avanços e recuos 22/10/2012
- Denis Lerrer Rosenfield*
No contexto do julgamento do mensalão e das eleições municipais, dois fatos da maior importância passaram despercebidos. Um, a suspensão indefinida da Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), que, finalmente, regulamentava as condicionantes do julgamento da Raposa-Serra do Sol. O outro, uma decisão do ministro Marco Aurélio Mello (STF) relativa a uma área determinada no município de Lábrea, no Amazonas, tornando válidas as condicionantes da Raposa-Serra do Sol para esse e outros casos.
A portaria da AGU regulamentava as condicionantes do Supremo. No dizer do próprio ministro Luiz Adams quando de sua promulgação, ela preenchia uma lacuna importante, trazendo segurança jurídica ao País. Mas as pressões dos movimentos sociais, da Igreja Católica, da Funai, do Ministério Público Federal (MPF) e de certos setores do PT foram de tal monta que o governo se viu forçado a recuar. O recuo não deixa, porém, de ser ambíguo, porque a portaria que revogou a Portaria 303 declara explicitamente que ela voltará a valer tão logo o STF julgue os embargos. De um lado, o governo reafirma a validade das condicionantes; de outro, suspende sua aplicação sine die.
Note-se que o acórdão do STF relativo ao julgamento da Raposa-Serra do Sol não foi até hoje regulamentado, passados longos cinco anos de insegurança. Certamente o Supremo não julgará os embargos ainda este ano, postergando tudo para o ano que vem, se é que essa questão voltará a entrar em pauta em 2013. Nesse meio tempo, a Funai está acelerando a identificação e demarcação de terras indígenas, como se a nossa Suprema Corte nada tivesse decidido.
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Os movimentos sociais, no entanto, não estão contentes, como o Conselho Indigenista Missionário, a Comissão Pastoral da Terra, o MST e várias ONGs nacionais e internacionais, apregoando que a portaria seja simplesmente revogada, não tendo mais nenhuma validade. Isso significa dizer que o acórdão do Supremo nada vale!
Convém assinalar que a regulamentação das condicionantes do Supremo não atende somente aos problemas do agronegócio, mas também aos interesses do governo. O agronegócio convive há muito com a insegurança jurídica relativa às questões indígenas. Os interesses do governo estão sendo, por seu lado, fortemente atingidos, pois as ações da Funai contrariam os projetos governamentais de construção de hidrelétricas na Região Norte do País.
Pode-se, nesse sentido, dizer que a suspensão da portaria contraria o próprio governo, uma espécie de tiro no pé, pois o setor energético será um dos mais atingidos no curto prazo. As contradições internas ao governo terminam por tornar inviáveis suas próprias ações. A polêmica sobre a construção de Belo Monte é apenas a parte mais visível desse iceberg.
Além do setor energético e do agronegócio, convém assinalar que em muitas áreas do País são pequenos e médios empreendedores rurais que estão sendo ameaçados. Na grande maioria dos casos, são pessoas que possuem títulos de propriedade ou posse há muito tempo, em áreas que não eram consideradas indígenas quando da promulgação da Constituição de 1988.
Com a validação da portaria da AGU e o respeito às decisões do STF, o caminho estaria aberto para que uma solução definitiva e equitativa para todos fosse tomada, contemplando os indígenas e os não índios. Uma solução equitativa consistiria em comprar terras para populações indígenas que eventualmente necessitem, por exemplo, por crescimento demográfico em algumas regiões do País.
Outros projetos governamentais e do setor privado são igualmente atingidos. Todo o processo de construção de estradas e ferrovias em áreas supostamente indígenas, segundo os movimentos sociais, as ONGs nacionais e internacionais e a Funai, deveria ser suspenso, à espera de outra decisão do STF, como se isso fosse ainda necessário.
Do ponto de vista da soberania nacional, há problemas de monta envolvidos, pois muitas das terras indígenas identificadas, demarcadas e homologadas são ricas em minérios. A Funai e essas ONGs procuram impedir até mesmo o Exército de entrar nessas áreas, com problemas especialmente graves nas faixas de fronteira.
Entretanto, o ministro Marco Aurélio, em 21 de setembro, a partir de ação impetrada pelo advogado Rudy Ferraz em nome do município de Lábrea, deferiu liminar vetando a ampliação da terra indígena em questão, além de considerar que o desrespeito da Funai às condicionantes do Supremo também atingia o direito do município de ser consultado em todas as fases do processo. O ministro Marco Aurélio estabeleceu um limite bastante claro às ações da Funai e do MPF, abrindo a via para que outros municípios, empresas e empreendedores rurais sigam o mesmo caminho.
No caso do julgamento em tela, para se ter uma ideia do caráter arbitrário da Funai e do MPF, já se tratava da terceira ampliação dessa terra indígena, em flagrante desrespeito à decisão do STF. Com essa ampliação, a Terra Indígena Kaxarari compreenderia 145.889 hectares para 240 índios!
Em sua sentença o ministro Marco Aurélio chega a mencionar que a Funai, por suas ações, produz "insegurança jurídica", criando um "potencial risco de conflito fundiário entre índios e produtores rurais", com "inegável prejuízo aos investimentos em atividades produtivas praticadas há décadas, à ordem do território e às finanças do ente federativo reclamante". E tudo o que o País menos precisa é de um acirramento de conflitos.
A solução está à vista, porém tudo indica que os criadores de problemas vivem precisamente deles. A corajosa atitude do ministro Marco Aurélio baliza com toda a clareza a necessidade de que a insegurança jurídica reinante chegue ao fim, no respeito à ordem constitucional e às decisões do STF, pois só assim uma decisão equitativa que contemple todas as partes poderá ser tomada.
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*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR